Meu filho é atípico
Quando nasce um filho, somos tomados por toda a sorte de emoções. Não sabemos ao certo o que esperar. Às vezes até achamos que sabemos, e o fato é que as expectativas – boas ou assustadoras, são palavra de ordem nessa ocasião. Uma gama de sentimentos – muitas vezes contraditórios, nos assalta. Euforia, entusiasmo, medos e preocupações diversas figuram dentre as distintas emoções que nos visitam, muitas vezes simultaneamente, e conduzem nossas mentes e corações a uma viagem numa montanha russa de loops intermináveis. Até aí tudo certo, acontece com todo mundo. Entretanto, a situação pode sair completamente do nosso ilusório controle.
Quando nos preparamos ou simplesmente nos deparamos com o nascimento de um filho, quase nunca traçamos nossos planos parentais levando em conta a ocorrência de situações negativamente inesperadas. E elas não só podem acontecer como, de fato, acontecem. Ocorre que dessa vez não foi na casa do vizinho. Definitivamente, alguma coisa está muito diferente e tudo parece estar fora do lugar. Muitas vezes a descoberta se dá ainda na gestação, em outras situações após o nascimento, e muitas ao longo do desenvolvimento infantil, em especial durante a primeira infância, período em que as habilidades e competências da criança se tornam mais perceptíveis e as diferenças tendem a ganhar uma desconcertante visibilidade. Começa a roda desenfreada da procura pelo diagnóstico, que pode se concretizar de forma precoce, tardia ou até mesmo nunca ser definido.
Poucas situações são tão devastadoras quanto a descoberta da diferença de um filho. O chão se abre, formando uma cratera emocional que, quer queiram ou não, será a assustadora e indesejada moradia emocional inicial ou até mesmo definitiva dessa família.
Uma ciranda de emoções e sentimentos intensos são vivenciados, muitos dos quais como medo, raiva, culpa, revolta e muito sofrimento. Tais emoções podem ser tão são assustadoras que os pais tendem a sufocá-las, de forma inconsciente, em nome de uma cultura coletiva de desumanização da pessoa dos pais, como se a parentalidade isentasse a condição humana. Quase todos, invariavelmente, ao redor dos pais, se colocam na posição de conselheiros – verbalizadores ou não, pois muitas vezes o não falar fala, ainda que dotados de intenções de ajuda, mas que terminam por gerar nos pais ainda mais angústia e dúvidas. Os outros filhos, caso existam, entram na roda também. O relacionamento afetivo dos parceiros em muitos casos perece desastrosamente, isso sem falar nos que são pais em carreira solo.
Precisamos falar abertamente sobre as emoções desses pais. Sem meias palavras, buscando ser o mais isento possível de julgamentos e preconceitos, com humildade e coragem, ou seja, agindo com o coração, pois coragem é agir com o coração, e não deveria ser sinônimo de bravura.
Essa tarefa pode parecer simples e fácil, mas não é, e muitas são as razões. Em primeiro lugar, não somos encorajados e tampouco fomos acostumados a olhar para dentro de nós mesmos. E, quando olhamos, o que quer que venhamos a descobrir se converte em verdadeiros segredos de alcova. Não se trata de sair por aí anunciando aos quatro ventos as nossas emoções, pois isso terminaria em piorar ainda mais a situação que já é, por definição, de muita vulnerabilidade, mas estar atento à forma como esses sentimentos podem comprometer a nossa caminhada.
Muito se fala de autoconhecimento, mas pouco se faz a esse respeito, especialmente no seio das famílias. Crescemos ouvindo que os filhos são sempre uma bênção – o que não é objeto da nossa reflexão, mas está aqui para exemplificar quão idealizado, romanceado e velado é o exercício da parentalidade na nossa cultura, e em especial, a parentalidade atípica. Afinal, somos pais porque somos humanos. Os pais de crianças atípicas se tornam objeto de extrema curiosidade, se veem constantemente invadidos por olhares, perguntas, explicações sem fim, sem falar nas manifestações como dor e lamento que os cercam, dentre tantos outros que os reduzem à condição de pessoas diferentes, com problemas, roubando-lhes o direito à dignidade de continuar a existir apenas e tão somente como seres humanos frente a novos e grandes desafios. Nem mais, nem menos.
Nossa proposta é um diálogo franco e aberto com os pais de crianças atípicas. Seus medos, dificuldades, dores, cansaço, vitórias e todo o universo desconhecido, desafiador, solitário e definitivo que a parentalidade atípica descortina por sobre os olhos dessas pessoas. Naturalmente, quando sonhamos e planejamos um filho, apesar de sabermos que não há garantias de que a criança que chegar estará, pelo menos inicialmente, em plenas condições de saúde, ainda assim o filho esperado é quase sempre uma criança idealizada. Afinal, a prevalência estatística de nascimento de crianças típicas é infinitamente superior quando comparada à de crianças atípicas, e assim seguimos com relativa tranquilidade, aguardando ansiosamente a hora em que vamos conhecer o novo bebê e levá-lo para o seu quartinho cuidadosamente decorado e prontos para as cólicas, noites mal ou não dormidas, idas ao pediatra, babás e outras descobertas entre fraldas e mamadeiras. Certo? sim e não!
Ocorre que, no caso de crianças atípicas, tudo isso e muita, mas muita emoção vem pela frente. Nossos pais (heróis?) agora, parafraseando Jorge Vercilo, são desafiados a aguentar bem mais que o peso das contas do mês, que aliás, vão aumentar e muito.
Para explorar um pouco desse universo desafiador, a Vocatum Psicologia disponibiliza a série Parentalidade Atípica, que vai tratar de forma simples, acessível e nada romanceada sobre o mundo desses pais, que quase sempre se encontram num infinito estado de autoanulação e autonegligência que a situação parece exigir. Mas não precisa ser assim, não tem que ser assim, não deve ser assim. Pais que se negligenciam e se anulam excessivamente, ainda que em favor da imperiosa doação amorosa ao filho atípico, tendem a viver esgotados, geralmente tornam-se muito ressentidos em razão do acúmulo de sofrimento, podendo adoecer e até mesmo comprometer a qualidade do cuidado ofertado aos outros filhos, parceiros, trabalho, relações sociais e, inclusive, as necessidades do filho atípico. Definitivamente, esse quadro não é nada atraente, apesar de assustadoramente prevalente. Mas, e então, o quer fazer?
Como na vida, na parentalidade e, em especial na parentalidade atípica, não há fórmulas nem receitas. No entanto, um recurso comprovadamente eficaz é falar abertamente sobre aquilo que nos acomete, e o primeiro passo para falar é aprender sobre a condição humana, e esse é o nosso convite. Sim, sobre a condição humana, pois absolutamente tudo o que somos, sentimos, amamos, detestamos e fugimos mais nada mais é do que as emoções tipicamente humanas vindo à tona. A proposta aqui é a identificação, reconhecimento e legitimação da singularidade dos pais, buscando a libertação do peso da capa de herói, através do acesso a materiais diversos, depoimentos, entrevistas, dicas de leitura, vídeos e muito mais. Se você se identificou ou se interessou por essa empreitada, te convido para juntos debatermos sobre os sentimentos típicos de pais atípicos, as diferenças que os assemelham e a condição humana. Essa série é sobre o José que habita em nós, pois somos todos Josés, quer saibamos disso ou não. Simples assim.
José
E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? E agora, você? Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? E agora, José?
Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?
E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio — e agora?
Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas,
Minas não há mais. José, e agora?
Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse…
Mas você não morre, você é duro, José!
Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?Carlos Drummond de Andrade
Bibliografia
ANDRADE, Carlos Drummond. José. José Olympio, 1942.