Estamos vivendo um tempo – já faz tempo, aliás, de manifestações muito particulares à respeito do cansaço crônico que assola boa parte da humanidade, despertando o interesse de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento desde a medicina até a filosofia. Certamente a pandemia mundial de COVID-19 tem um papel importante nessa discussão, uma vez que fomos todos de certa forma condenados a situações atípicas que desencadearam, dentre outros sintomas, muito cansaço. Entretanto, a pandemia atual apenas trouxe à baila o que já estava prestes a eclodir. Trata-se de um cenário anterior e multifacetado.
A tecnologia tem se desenvolvido em larga escala e hoje dispomos de facilidades impensáveis há vinte anos. Confortos múltiplos, comunicação instantânea, informação abundante, muita tecnologia e uma incapacidade desconcertante de desligar e descansar. Estamos aprisionados. Como resultado, podemos pensar no aumento do imediatismo, relações cada vez mais superficiais, dificuldade de tomar decisões sustentáveis e satisfatórias, cobranças infinitas e um aumento expressivo de estados físicos e psicológicos que têm o cansaço em suas origens e/ou como consequências, num ciclo de retroalimentação preocupante.
Vivemos mergulhados na cultura do self made man e suas variantes, expressão esta que foi cunhada por ninguém menos que Benjamin Franklin, considerado o pai do empreendedorismo norte-americano, em sua máxima “Quem tem caráter trabalha, trabalha, trabalha e vence.” Ocorre que, como toda premissa que se perpetua, a ideia do self made man se ampliou, ganhando novos contornos e permeando boa parte da estrutura social entendida como ideal, tornando-se um dos pilares de conduta social do mundo ocidental, e qualquer situação fora disso é arbitrariamente questionada.
Para alcançar esses padrões, muitas vezes nos convertemos em seres autômatos, com baixa ou nenhuma capacidade de crítica eficiente e quase sempre incapazes de questionar a respeito dos paradigmas tidos como ideais e autoimpostos.
Um dos braços dessa discussão alicerça o modelo de sucesso que nos orienta, um ideal a ser perseguido e alcançado. Temos que ser bem-sucedidos em todas as áreas. Carreira, família, dinheiro, status social, beleza, magreza, juventude, dentre tantos outros. Enfim, nada escapa a esse radar. Para alcançar esses padrões, muitas vezes nos convertemos em seres autômatos, com baixa ou nenhuma capacidade de crítica eficiente e quase sempre incapazes de questionar a respeito dos paradigmas tidos como ideais e autoimpostos.
O acesso à informação nunca foi tão rápido e facilitado. Paradoxalmente, nunca estivemos tão carentes de conhecimento e sabedoria. O corpo, a saúde e os valores se converteram em meios para alcançar resultados exitosos. Mutilamos nosso corpo, pois precisamos estar belos aos olhos dos outros, uma vez que o olhar individual e singular, que acolhe as diferenças, há muito já não basta. A saúde precisa ser sempre muito bem resolvida. Quando adoecemos, buscamos uma solução rápida e indolor, sem ao menos nos perguntarmos as razões que contribuíram para o adoecimento, desperdiçando uma valiosa oportunidade de crescimento. Sofrimento? Dispomos de uma infinidade de medicamentos que nos anestesiam e induzem estados artificiais de bem-estar, e assim seguimos caminhando, cada vez mais distantes e desconectados de nós mesmos e dos outros.
Os relacionamentos se tornaram líquidos, conforme denunciou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. De acordo com o autor, vivemos num mundo de muitas incertezas, de cada um por si. Os relacionamentos são instáveis, uma vez que as relações humanas estão cada vez mais flexíveis. Nos adaptamos tanto ao mundo virtual e sua agilidade de “desconectar-se”, que as pessoas não conseguem manter um relacionamento de longo prazo. Trata-se de um amor criado pela sociedade atual – na modernidade líquida, para tirar das pessoas a responsabilidade de relacionamentos sérios e duradouros. As pessoas estão sendo tratadas como bens de consumo, ou seja, caso haja defeito descarta-se – ou até mesmo troca-se por “versões mais atualizadas.” Trocando em miúdos, tiramos e somos tirados da vida das pessoas em apenas um click. Seguindo mutilando a nossa história. Quanta praticidade, não?
Quando adoecemos, buscamos uma solução rápida e indolor, sem ao menos nos perguntarmos as razões que contribuíram para o adoecimento, desperdiçando uma valiosa oportunidade de crescimento.
Pelo que constatamos tudo se tornou muito acessível, fato que apresenta grandes vantagens, indubitavelmente, desde que nossas ações sejam parcimoniosas e equilibradas, visando o bem-estar individual e coletivo. Contudo, algo não mudou – a nossa condição humana. Apesar da nossa constante evolução, somos seres de natureza e capacidades limitadas. A saúde se deteriora e inevitavelmente vamos morrer, inclusive porque a morte faz parte da vida. O corpo muda com o tempo, as funções se alteram e todos envelhecemos, ainda que em ritmos diferentes. Nossa produtividade não é linear, nem sempre alcançaremos êxito e sucesso em todas as áreas da nossa vida, e tampouco o conseguimos continuamente. Nem todos nascem em conformidade com os voláteis padrões estéticos da época a qual pertencem, tidos como belos e bons, e é crueldade consigo mesmo não aceitar e honrar o corpo que habitamos. Nossas famílias não são e certamente nunca serão perfeitas, uma vez que as famílias são formadas por pessoas, e isso basta.
Apesar da nossa constante evolução, somos seres de natureza e capacidades limitadas.
A busca por melhorias e crescimento por si só tende a ser saudável boa parte das vezes. Afinal, sem uma grande dose de motivação e trabalho árduo, renúncias mil e muita persistência, corre-se o risco de ficar estagnado, o que não parece ideal. O que podemos e devemos avaliar é o preço que pagamos na busca desenfreada e desmedida pela obtenção de sucesso com base no custe o que custar. Quando o custo dessas conquistas é exacerbado, pode comprometer muitos outros aspectos da vida, gerando um grande desequilíbrio. Nesses casos, o ideal de vida precisa ser revisitado, reavaliado e muitas vezes alterado, para então ser acolhido. Nossas escolhas precisam ser encaradas, examinadas sob perspectiva, e a vida posta na balança. Leva tempo, exige coragem e renúncia.
Somos seres singulares, únicos, com contornos individualizados, de forma que parece incoerente e arbitrário imputar à todos a adequação ao mesmo modelo social. Mas, de fato, quando não aprendemos a desenvolver um pensamento crítico e diferenciado, nos permitimos ser massacrados pela cultura dominante e somos tentados, sem que muitas vezes não tenhamos nenhuma consciência disso, a nos julgarmos, e pior – nos condenarmos por não responder satisfatoriamente a tais padrões, sentindo-nos fracassados e frustrados.
Talvez essa seja uma das razões para tanto cansaço. Nos encontramos num permanente estado de tentativa de enquadramento em formas que não necessariamente – ou quase nunca, são compatíveis com o nosso modelo. Já não é mais suficiente atendermos as leis e códigos de conduta coletivos, temos também que obedecer ao mandato social de sucesso, ser o self made man bem-sucedido em tudo o tempo todo. Definitivamente, tanta cobrança cansa, esgota. A busca por alcançar e atender a tantos padrões pode desencadear um estado de profunda desconexão do ser, que não mais suporta existir como um eu desconhecido, alijado de si mesmo, incapaz de se aceitar, se respeitar e se cuidar a partir de lugares internos sólidos e sustentáveis. Caetano Veloso, na música Dom de Iludir, já disse que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, mas parece que a delícia já não mais nos acompanha e a dor tomou conta de nós, manifesta na forma de ansiedade, vazio existencial, falta de sentido, dentre outras. Incomoda a ideia de que talvez tenhamos desaprendido a importante habilidade de enxergarmos nossas próprias dores e de nos regozijarmos com as nossas delícias particulares. Na busca desenfreada pelo sucesso, o insucesso surge como uma sombra que assombra. Não é de se espantar que o cansaço tenha se tornado crônico e coletivo, assolado por frequentes episódios de agudicidade. Uma das possibilidades extremamente válidas que possibilitam a quebra – ainda que parcial, desse círculo vicioso e aprisionador aponta para o autoconhecimento, que é a estrada para a autoaceitação consciente, não mágica nem fantástica, a serviço do eu, da liberdade de ser quem se é, da plenitude possível à condição humana, que não tem a pretensão, e tampouco nenhum compromisso em atender às imposições sombrias e muitas vezes perversas do mandato do self made man.
Nossas escolhas precisam ser encaradas, examinadas sob perspectiva, e a vida posta na balança. Leva tempo, exige coragem e renúncia.
Precisamos dialogar com o cansaço, convidá-lo para tomar uma bebida quente – ou gelada, ouvi-lo, deixar sair. O cansaço é, de fato, um sintoma de época, coletivo. Assim como na época de Sigmund Freud, o pai da psicanálise, irromperam as histerias e neuroses à serviço das necessidades e dores coletivas daquele tempo e que só depois de ouvidas e acolhidas puderam ser relativizadas, urge olhar a serviço do que estamos tão cansados. Vale lembrar, sobretudo, que a coletividade é formada pelo conjunto de indivíduos, e isso por si só já diz tudo. Não se entende as demandas coletivas sem olhar para as necessidades individuais. Não se atende o coletivo sem respeitar a singularidade.
“Aqueles que não aprendem nada sobre os fatos desagradáveis de suas vidas forçam a consciência cósmica que os reproduza tantas vezes quanto seja necessário, para aprender o que ensina o drama do que aconteceu. O que negas te submete. O que aceitas te transforma”.
Carl G. Jung
Dialogar com o cansaço. Ele pode ser um ótimo mestre. Essa é a ideia e o chamado. Como parece?
Bibliografia
HOPCKE, Robert H. – Guia para obra completa de Jung – 3ª ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.