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Desenvolvimento Humano

Sem lenço e sem documento – o dilema dos imigrantes

O movimento migratório, que são os deslocamentos populacionais, é tão antigo na história da humanidade que atravessa a noção de identidade do ser humano.

A história do Brasil é um exemplo desse fenômeno. Somos uma nação formada por uma reunião de povos e culturas, da qual somos o resultado. Muitas são as razões que encorajam a saída do país de origem. Dentre estas, uma parte significativa dos imigrantes parte em busca de melhores condições de trabalho e vida, nessa ordem.

Nesse processo, se enchem de coragem e sonhos e optam por tentar a vida numa terra distante e promissora.

Como todas as ações humanas, a decisão de viver em outro país traz inúmeras consequências, revelando vantagens e desvantagens. Entretanto, a forma de cada pessoa lidar com os impactos da imigração é muito particular, podendo inclusive se apresentar de diferentes maneiras na mesma pessoa, dependendo da época e das condições.

Apesar da experiência de imigração atravessar cada pessoa de maneira distinta, é possível identificar a presença de alguns sentimentos e emoções comuns aos imigrantes, que se apresentam na vida dessas pessoas com contornos diferenciados.

A trajetória do imigrante, em especial das pessoas que se encontram com a situação documental irregular no país onde vivem, impõe uma condição de extrema vulnerabilidade, tornando esse indivíduo mais propenso ao adoecimento físico, psicológico e emocional.

A pressão psicológica a que estão constantemente submetidas essas pessoas que vivem diariamente sob influência de condições estressantes como viver à margem da sociedade, a ilegalidade frente às autoridades, situação econômica mais desvantajosa em razão da inserção no mercado de trabalho apresentar características como salários mais baixos, jornadas de trabalho extenuantes, falta de acesso a serviços médicos, dentre outras, representa em geral um agravante para a manutenção da saúde. 

Esse conjunto de fatores pode desencadear uma autopercepção de que a pessoa tem menos valor, de ser invisível para a sociedade, de não pertencimento ao grupo social, além do medo constante, no caso dos que não tem permissão para viver no país. Infelizmente nessa situação há pouco ou nenhum espaço de escuta e acolhimento. As escassas oportunidades de interação costumam se dar com outros imigrantes que geralmente se encontram na mesma situação de vulnerabilidade, onde o compartilhamento do sofrimento se torna o tema recorrente.

Ao deixar o país, especialmente com o passar do tempo, as perdas podem assumir um protagonismo desconcertante. Por outro lado, a prosperidade material geralmente nunca alcançada na terra natal, a recorrente dependência financeira dos pais e parentes no país de origem e dos filhos que nasceram ou cresceram e estão adaptados ao país atual inviabilizam o retorno à terra natal.

Nesse cenário, onde as inúmeras perdas como a convivência com a família de origem e amigos, da língua materna, do lugar social, da cidade, da comunidade, muitas vezes ameaça a história de vida da pessoa, que passa a se perceber como não pertencente lugar nenhum, uma vez que não se encaixa totalmente no país onde mora e nem no país de origem. A identidade pode ficar fragmentada, partida, presa entre dois mundos, entre duas realidades.

Por viver constantemente numa situação de instabilidade, o imigrante pode passar a se identificar com a condição de clandestinidade, de ilegitimidade, o que pode causar uma confusão entre a situação em que se vive e o próprio ser.

Uma estratégia eficaz para buscar aplacar esses sentimentos consiste em desenvolver ações que visem o fortalecimento da saúde emocional e psicológica.

A busca pelo reconhecimento da própria condição de imigrante, de forma lúcida e profunda, fugindo dos extremos de compreensão onde tudo é bom ou tudo é ruim, encarando a situação com o objetivo de traçar estratégias de sobrevivência possíveis de serem implantadas na esfera individual e familiar costuma produzir resultados significativos.

Como responsáveis pela manutenção da própria vida, uma vez que quase nunca nessa condição se pode contar com apoio externo, o imigrante necessita trabalhar para evitar o adoecimento que pode se manifestar em doenças como transtornos de ansiedade, depressão, transtorno do pânico, dentre tantas outras condições debilitantes.

Cultivar hábitos saudáveis, buscando o equilíbrio entre o trabalho e o descanso, o incremento do lazer, e sobretudo fugir do vício no trabalho como fuga da solidão, da saudade extrema e do arrependimento pela mudança. Nesses casos, o trabalho passa a representar um fim, e não um meio de vida. Tal situação não tarda em apresentar as consequências desse desequilíbrio. 

Outros hábitos que fortalecem muito as emoções e o psicológico são o exercício físico regular –  inclusive para quem realiza trabalho braçal, práticas de autocuidado, cuidado com a imagem pessoal, práticas religiosas (quando for a opção pessoal), atividades relaxantes como o cuidado e convivência com animais de estimação, jardinagem, leitura e artesanato são ferramentas muito úteis na promoção  a saúde e prevenção de doenças.

Caso se perceba em situações como tristeza excessiva e prolongada, choro sem motivo aparente, insônia sem causas orgânicas, ansiedade, agitação, nervosismo, cansaço constante e dificuldade de se relacionar com outras pessoas, vale a pena considerar a possibilidade de buscar ajuda psicológica, de preferência na língua materna, pois as sutilezas culturais e seus impactos na nossa vida são mais facilmente compreendidas pelos conterrâneos.

Nesses casos, a psicoterapia pode ser de grande ajuda para a compreensão dos sentimentos e emoções de forma mais ampla e o manejo da situação de forma individualizada e adequada a realidade individual. 

A busca pela saúde e qualidade de vida é um processo constante. O investimento em se autoconhecer e aprender a lidar com os desafios que se apresentam nos capacita a viver de forma mais satisfatória.

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Vocatum Indica

Colcha de retalhos

O filme narra a trajetória de um grupo de mulheres de diferentes gerações que se reúnem para confeccionar colchas de retalhos, tendo sempre um tema para nortear seu trabalho de construção coletiva.

A produção é de 1995, mas a temática é atemporal.
O filme narra a trajetória de Finn, uma jovem de 25 anos que está tentando concluir sua tese de mestrado e que entra e conflito ao receber do namorado, com quem vive, uma proposta de casamento.
Ao se perceber desorientada, a jovem resolve passar o verão na casa da avó para terminar a sua tese e reorganizar as emoções e pensamentos.
Nesse período, tem a oportunidade de conviver com um grupo de mulheres que se reúne numa espécie de clube para confeccionar colchas de retalhos temáticas e artesanais.
A atividade, entretanto, vai além do trabalho coletivo, de forma que proporciona uma releitura de diferentes narrativas da vida dessas mulheres, suas histórias, escolhas e paixões, despertando sentimentos intensos em todas as envolvidas, inclusive em Finn, enquanto uma colcha temática sobre o amor é confeccionada, para ser ofertada a ela.
Descobertas inusitadas acontecem e, com isso, um reposicionamento diante da vida e das escolhas é requerido.
O filme é uma obra de arte. Fala sobre a vida, suas sutilezas, encantos e desencantos que perpassaram as vidas dessas mulheres, convidando-nos a refletir a respeito da nossa própria vida e escolhas.

Ficha Tecnica

  • Titulo Original – How to Make an American Quilt – 1995, dirigido por Jocelyn Moorhouse, Estados Unidos
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Psicologia do Climatério

Climatério e Pandemia, uma conta que não fecha

Estamos exaustos, não restam dúvidas. O “novo normal”, que de normal não tem nada, agora nem mais novo é. Já estamos no segundo ano de pandemia de COVID 19 e a vida insiste em não se acomodar. Ao contrário, incomoda.

Somado a esse cenário nada alentador, muitas mulheres começaram a vivenciar o climatério, que é um processo novo, e normal. Sim, normal. Acontece que temos o hábito de entender por normal situações conhecidas, e o climatério, apesar de recorrente, frequente e esperado segue rodeado de mistério, o que o coloca na ciranda de assuntos pouco explorados. Daí talvez venha a sensação de que essa etapa não é normal.

Assim como em razão da pandemia tivemos (e ainda teremos, e nem sabemos até quando) que buscar alternativas possíveis e viáveis de conduta dentro das poucas alternativas que nos restam, no climatério semelhante necessidade desponta.

As alterações despontam, reclamando serem atendidas. Nossos corpos, forças e hábitos estão sob novos comandos, constatação que costuma causar comoção e ressentimentos por parte de muitas mulheres. Um dos fatores que dificulta muito a travessia do climatério é a resistência em aceitar as mudanças, que sempre são encaradas como punição ou perdas.

Não é de se estranhar que muitas de nós prefiram ignorar os sinais e sintomas do climatério, como se assim fazendo, pudéssemos barganhar com o “envelhecimento”… afinal, o que os olhos não veem, o coração não sente. Será?

O nosso organismo tem uma inteligência própria, além de uma imensa capacidade de adaptação. Então, de nada adianta tentar enganá-lo. Se nos recusarmos a admitir as mudanças trazidas pelo climatério, que são necessárias e saudáveis, a situação tende a se tornar mais desafiadora do que já é. Tal postura coloca um sobrepeso emocional e psicológico num período onde a mulher precisa se aceitar e se acolher de forma profunda e significativa, a fim de não sofrer em demasia durante esse período e nos anos subsequentes.

É sabido que o climatério costuma ser bastante desafiador para a maioria das mulheres. Buscar informações, autoconhecimento, aceitação da passagem do tempo e suas características ajuda a relativizar as perdas e descobrir os ganhos. Apesar de ser um processo de transformação e preparação para o fim do período reprodutivo da mulher, é plenamente possível ampliar o entendimento do papel da mulher para além da função reprodutiva, e tal processo costuma ser libertador.

Para minimizar o sofrimento e potencializar as descobertas significativas, o conhecimento é um grande aliado. Caso essas mudanças despertem sentimentos muito dolorosos e difíceis de lidar, considere a possibilidade de buscar ajuda profissional.

Outra possibilidade de auxílio é o diálogo. Cada mulher vivencia o climatério de forma única e singular, mas buscar grupos de partilha promove encorajamento e senso de pertencimento. O climatério ainda é um assunto pouco abordado na sociedade e me muitas famílias, então é melhor procurar educar os que estão no seu entorno relacional do que se ressentir e se isolar em razão não estar sendo compreendida da maneira que você necessita. Afinal, estamos vivenciando uma pandemia em escala global, e estamos todos muito fragilizados. Cuide-se especialmente. Sua saúde e qualidade de vida agradecem.

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Autoconhecimento

Perennials – Chegamos para ficar

Ao longo da história, são comuns os relatos que definem as gerações nascidas em determinada época. Nessa perspectiva, pode-se listar com certo grau de precisão os preceitos, hábitos e costumes prevalentes entre indivíduos nascidos em determinado espaço de tempo.

A catalogação das informações é um dos instrumentos pelo qual os estudiosos estruturam e classificam os modos de agir e pensar de determinado grupo. Dados como o levantamento das invenções tecnológicas, as expressões artísticas e culturais, assim como os padrões de pensamento e hábitos de vida ajudam a organizar e definir as gerações.

Um exemplo disso é a análise dos hábitos e costumes da chamada geração Y ou millenials. Esse grupo de indivíduos nasceu entre 1982 e 2000, de forma que vivenciaram desde muito cedo a explosão tecnológica que marcou essa época, com acesso abundante a aparelhos celulares e internet, com todas as suas facilidades. São considerados assertivos, flexíveis e criativos.

Ate que ponto, de fato, a época em que uma pessoa nasceu pode definir ou explicar suas tendencias e comportamentos é um preceito que parece não ter uma explicação convincente.
Gina Pell, em 2016 criou o conceito perenialls – que em livre tradução do inglês significa perene, para se referir a uma parcela da população que se caracteriza por ter hábitos e costumes de diferentes idades, não podendo, portanto, ser caracterizada através de estereótipos regulados pela correspondência com a época em que nasceram.

Em seu artigo Meet the Perennials – Because age ain’t nothin’ a number (Conheça os Perennials – Porque idade não é nada além de um número) em livre tradução do inglês. Segundo a publicitária, o termo foi escolhido por ter conexão com a ideia de durabilidade, recorrência e florescimento.

Uma grande presença entre os perennials são as mulheres, em especial as com mais de 40 anos. Nessa faixa etária, a maioria delas já conquistou sua independência de ideias e hábitos e estão dispostas a lutar por eles, ainda que remem na direção contraria das convenções familiares e sociais. Gozam de segurança e liberdade de expressão, além da disposição em serem fieis aos seus pensamentos.

O movimento perennials vem de encontro a um anseio da mente que, quando estimulada, não envelhece. A adaptabilidade é um dos seus pilares. A construção de uma identidade social flexível e atemporal, além da legitimação do seu lugar no mundo são bandeiras importantes.

Afinal, sempre é tempo de crescer, e as limitações podem e devem ser questionadas. Com equilíbrio, força, liberdade e leveza. 

Bem-vindas perennials. 

Ana Lea Alves Oliveira Jacob

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Psicologia do Climatério

Qualidade de vida no climatério – Desafios e possibilidades

Associar qualidade de vida e climatério suscita sempre insegurança, uma vez que essa fase da vida da mulher é percebida na nossa cultura como um período marcado por provações e sofrimento físico, psíquico e social, fortemente associado ao envelhecimento – quase sempre indesejado.

O envelhecimento, entretanto, é uma vivência singular e, sobretudo, percebido de forma distinta a depender de características pessoais, aspectos culturais e gênero. 

Com o aumento da expectativa de vida no Brasil nas últimas décadas e a feminização do envelhecimento em razão da alta prevalência das mulheres entre os idosos, o climatério passou a ocupar um lugar de importância significativo, uma vez que esse período impacta diretamente no envelhecimento. Considerando que a média de vida das mulheres, segundo dados levantados pelo IBGE em 2018 é de 79,9 anos e a dos homens é de 72,8, e levando-se em conta que o climatério pede durar de 15 a 20 anos, esse período pode representar cerca de um terço da vida da mulher. 

Embora sejam conhecidas as implicações do climatério para a qualidade de vida da mulher, pesquisas nessa área não são abundantes, e as políticas de atenção à saúde feminina são pouco abrangentes e até ineficientes se considerarmos o contingente populacional que vivencia o climatério, bem como a duração desse fenômeno. 

Apesar da forte correlação entre os sintomas do climatério e a diminuição da produção de estrogênio, a observação da vivência do climatério em diferentes culturas sugere que fatores socioculturais também exerçam uma influência significativa na percepção das mudanças advindas desse período. Segundo Papalia et al. (2013), em culturas onde o envelhecimento é valorizado, a chegada da velhice é recebida com menos receio quando comparada com as mulheres ocidentais. 

Também a história particular de cada mulher influencia na qualidade de vida do climatério. A percepção da qualidade de vida varia de acordo com valores subjetivos como bem-estar com o próprio corpo, aceitação da passagem do tempo e seus impactos, grau de satisfação com a própria vida, manejo e habilidade para suportar as frustrações, além de senso de propósito com o passado e projeções de futuro capazes de impulsionar as mudanças no ciclo de vida.  Outros indicadores como a saúde física e psíquica, sustento financeiro minimamente adequado, condições de moradia, segurança e lazer, inserção social e religiosidade impactam a qualidade de vida da mulher climatérica. 

O estranhamento do próprio corpo e emoções em função das alterações múltiplas precipitadas pelo climatério, somado à falta de informação de qualidade e suporte emocional e social tendem a transformar esse período num terreno fértil para ser vivenciado de forma inadequada, influenciando negativamente a qualidade de vida da mulher. 

De acordo com Hunter (1993), a insegurança causada pelas alterações físicas desencadeia problemas psíquicos e pode intervir no relacionamento familiar e sexual e na integração da mulher na sociedade, pois no momento em que deveria ampliar suas relações, a mulher se retrai, afastando-se do seu ambiente. 

Em razão de ser o climatério uma etapa marcada por mudanças físicas e emocionais, além de sofrer influência de outros fatores associados à história pessoal, familiar, características culturais, aspectos psicológicos, além de inúmeras outas variáveis, entende-se que o climatério irrompe em cada mulher de forma de forma singular, impactando nos seus sentimentos e interferindo na qualidade de vida (Freitas et al, 2004).

Pelo fato da passagem pelo climatério ser um fenômeno distinto para cada pessoa, essa fase requer um olhar diferenciado da mulher no tocante a se disponibilizar para acolher as alterações suscitadas por essa fase. Como todos os processos de mudança, os desconfortos relativos a essas adaptações podem surgir, variando de intensidade, em consonância com inúmeras variáveis particulares de cada mulher. Em razão de ser um processo de tamanha amplitude e envergadura, faz-se urgente e necessário estar aberto às próprias necessidades, buscando informações, cultivando um diálogo honesto consigo mesma e com os familiares, buscando ampliar as redes de suporte e colaboração. O conhecimento é uma arma poderosa. No climatério, o respeito ao corpo e suas necessidades é um dos pilares da qualidade de vida durante esse longo período do ciclo vital da mulher.

O equilíbrio emocional do climatério advém da capacidade de lidar com as frustrações e realizações, buscando lidar com as mudanças maturidade e serenidade, numa atitude de reverência aos processos inerentes ao corpo e emoções típicos da mulher. Por todas as variáveis que influenciam a passagem da mulher por essa longa e desafiadora fase, a qualidade de vida no climatério é um desafio, um direito e uma conquista.

Bibliografia

Conheça o Brasil – Piramide etária. Disponível em https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18318-piramide-etaria.html. Acesso em 07/02/2021

HUNTER, M. S. (1993) – Predictors of menopasal symptoms: psychosocial aspects. Baillière’s Clinical Endocrinology and Metabolism. Vol. 7, nº 1, p. 33-45.

PAPALIA et al. Desenvolvimento Humano. 12º Edição. Editora AMGH, 2013.

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Psicologia do Climatério

Angústia no climatério

A angústia é o grito da alma silenciado por uma mão que aperta o peito e dificulta o respirar, nos mantendo num estado de agonia – Silvana Lance

Estado de ansiedade, inquietude, sofrimento, tormento. Segundo o filósofo Kierkegaard (1813 – 1855), a angústia caracteriza-se por um sentimento de ameaça impreciso e indeterminado, inerente a condição humana, pelo ato de que o homem, ao projetar incessantemente o futuro, se defronta com a possibilidade de fracasso, sofrimento e, no limite, morte. 

Presente em grande parte dos relatos sobre a vivência do climatério, a percepção da angústia suscita a necessidade de nos debruçarmos sobre esse assunto, com o intuito de identificar os fatores psicológicos e culturais que facilitam o surgimento desse estado. O climatério, apesar de ser um processo natural para o qual o organismo feminino foi projetado, cuja função é preparar a mulher para o fechamento do ciclo reprodutivo, apresenta contornos socioculturais determinantes na qualidade dessa travessia. O envelhecimento, em razão da sua inevitabilidade, enseja uma elaboração racional. As emoções, entretanto, nem sempre acompanham tal elaboração. O confronto da mulher com as evidências físicas do próprio envelhecimento costuma provocar angústia. A forma com que cada mulher vai atravessar essa fase de mudanças, com maior ou menor prevalência de angústia, sofre interferências múltiplas, a depender de fatores ligados ao estilo de vida, variáveis biológicas, condições de saúde física e psicológica, contexto econômico e cultural, sistema de crenças e valores, além das características individuais. 

A construção cultural acerca do climatério e da cessação da função reprodutiva da mulher é carregada de preconceitos e estereótipos na cultura ocidental. A expectativa de vida da população brasileira é de 76,3 anos, e apesar do climatério ocorrer, em média, dos 41 aos 55 anos, a menopausa, ou seja, a interrupção definitiva da menstruação, é muitas vezes percebida como sinônimo de envelhecimento e incapacidade. A perda definitiva da possibilidade reprodutiva sugere, no imaginário coletivo, o início do envelhecimento feminino, e grande parte das mulheres se ressente, muitas vezes de forma inconsciente, com o prenúncio da velhice.

Nossa cultura valoriza em excesso aspectos como beleza, juventude e produtividade. Assim sendo, a mulher climatérica, sujeita a alterações corporais diversas, dentre inúmeros outros fatores, muitas vezes é subjugada, passando a ser representada como um ser deteriorado, debilitado e sem função social relevante. Essa construção social termina por induzir a estados de insatisfação e não aceitação das mudanças que se apresentam, impactando a autoimagem e facilitando o sentimento de menos valia, deixando a mulher vulnerável à conflitos psíquicos. 

O climatério acarreta uma alteração significativa no papel social da mulher. As mulheres idosas na nossa cultura gozam de um status social diminuído. Essa constatação pode precipitar um estado de profunda angústia e solidão, uma vez que a mulher acredita na premissa que sugere que todas as suas conquistas estão atreladas à juventude, atributo que não mais a representa. Apesar de valorizar a longevidade, os paradigmas sociais vigentes acerca do envelhecimento deixam muito a desejar no sentido da exclusão social do idoso, induzindo essa parcela da população a se autoperceber de forma negativa, sem valor, pois as moedas de troca mais aceitas – juventude, beleza e produtividade, estão fortemente dissociadas do envelhecimento, deixando o idoso sem função social, sem senso de pertencimento grupal. No climatério, ao se perceber envelhecendo, a mulher é confrontada com todas essas questões, e na tentativa de evitar o inevitável, a angústia se instala. 

O apego excessivo às características de outrora são o fio condutor da angústia auto infligida.

Segundo Martin Heidegger (1889 – 1976), um dos filósofos de maior destaque no século XX, a angústia pode ser entendida como uma situação afetiva fundamental, despertada pela consciência da inevitabilidade da morte. No climatério, permeado pela construção cultural da nossa sociedade, pode-se entender que o fim da fase reprodutiva prenuncia a morte da juventude, da capacidade de gerar filhos, da identidade e valor social. 

O conhecimento do corpo e das emoções femininas é fundamental para a compreensão das mudanças trazidas pelo climatério. Na busca por conhecer os próprios processos, a mulher deve priorizar o autocuidado, derrubando mitos e crenças que dificultam a passagem por esse processo de transformação. Nessa perspectiva, abre-se a possibilidade do resgate à dignidade do ser feminino, independente da etapa que está sendo vivenciada, em especial quando da travessia do climatério. O valor individual não está atrelado a nenhuma fase do ciclo vital. A transformação começa na própria mulher, ao cultivar o autorrespeito e reconhecer que as mudanças trazidas pelo climatério não são necessariamente negativas, antes a conclusão de uma etapa da vida. O apego excessivo às características de outrora são o fio condutor da angústia autoimposta. Buscar entender as transformações pode ser libertador, em detrimento de validar uma cultura que não compreende os processos naturais do ser feminino. 

Mudar a mentalidade de toda uma coletividade, entretanto, não é uma tarefa solitária. Leva tempo, é necessária uma educação voltada para a inclusão, sensibilização. Atitudes individuais, todavia, podem surtir um efeito maior que o esperado. Procurar compreender as mudanças despindo-se de todo e qualquer preconceito, entender o climatério como um período da vida repleto de possibilidades de mudanças e cultivar o autorrespeito, sem reproduzir conceitos errôneos e infundados ajudam a debelar o excesso de angústia e promovem, paulatinamente, alterações qualitativas na percepção coletiva a esse respeito.

A angústia que surge no climatério, paradoxalmente, traz uma série de possibilidades a serem exploradas. Ao buscarmos compreender os impactos das mudanças típicas desse período de forma profunda e individualizada, ou seja, considerando a própria percepção a respeito de todas as alterações que estão sendo vivenciadas, é possível relativizar o massacre social a que estão sujeitas as mulheres nesse período. A partir de um diálogo franco e aberto, abre-se a possibilidade de realização da travessia do período reprodutivo para o não reprodutivo com relativa tranquilidade e, sobretudo, com qualidade de vida. Essa jornada, entretanto, nem sempre é indolor. Há que se fazer algumas concessões, relativizar certezas e ter prontidão para mudar e aceitar as mudanças.  Ao se abrir para esse momento, até então desconhecido, a angústia tende a diminuir significativamente. Vale a pena lembrar que o climatério é um fenômeno multicausal, que compreende aspectos biológicos, psicológicos e culturais. Dessa forma, é imperiosa a necessidade de uma compreensão holística, que contemple o ser integral. Uma investigação da própria história, com disponibilidade emocional para rever posicionamentos e certezas guarda um potencial de crescimento. Não nascemos prontos para nenhuma das diversas etapas que a vida nos apresenta. Com o climatério não é diferente. Os desafios não são maiores nem menores do que em outros momentos da trajetória, apenas apresenta necessidades adaptativas próprias, que necessitam ser identificadas e validadas, numa atitude de respeito aos processos básicos do ser feminino em toda a sua magnífica complexidade. A angústia não é, por si só, boa ou ruim, apesar de ser uma experiencia desconfortável.  Sua função maior é nos lembrar que necessitamos de cuidado. Sobretudo, de autocuidado. 

A vida é uma série de mudanças naturais e espontâneas. Não resista a elas; isso só cria tristeza. Deixe a realidade ser realidade. Deixe as coisas fluírem naturalmente para a frente da maneira que elas desejarem. Lao Tzu

Bibliografia

Ruano, Eduardo. Soren Kirkegaard e o existencialismo. Disponível em http//Søren Kierkegaard e o Existencialismo – La Parola. Acesso em 12/12/2020.

Ser e tempo – Desconstrução da metafisica. Disponível em http//ihuonline.unisinos.br/media. Acesso em 12/12/2020. 

Expectativa de vida do brasileiro aumenta para 76,3 anos. Disponível em https://censo2021.ibge.gov.br/. Acesso em 04/02/21

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Desenvolvimento Humano

Desenvolvimento Humano

O desenvolvimento é um conceito amplo, objeto de estudo de diferentes ciências, que compreende diversos aspectos como os fatores biológicos, sociais e psicológicos. As características individuais, assim como as diversas expressões da cultura, dentre outros fatores, são interiorizadas e possibilitam o desenvolvimento e a formação da personalidade. 

Dessa forma, há que se considerar o impacto que as interações sociais, manifesto através das diferentes formas de convivência e cooperação, tem sobre o indivíduo.

O desenvolvimento humano está diretamente ligado à habilidade de ampliação das possibilidades e capacidades disponíveis, onde se incluem as dinâmicas sociais, econômicas, políticas e ambientais. 

Com tantas implicações, a contribuição individual pode estar enfraquecida pela falta de ênfase na sua relevância nesse processo. Atualmente, o modo de funcionamento da sociedade ocidental parece oferecer certos obstáculos ao estabelecimento de relações sociais baseadas em troca e cooperação. O foco na individualidade e independência, aliado aos excessos da vida moderna – informação, produtividade e sucesso, parecem enfraquecer a teia sobre a qual repousam as relações coletivas. Esse conjunto de fatores aponta para a necessidade do fortalecimento de relações paritárias que forneçam insumos para o desenvolvimento humano, de forma que voltarmos o olhar para tais necessidades e nos dedicarmos a ações de promoção à saúde social parece altamente benéfico.

Dentre os diferentes elementos que coadunam para o desenvolvimento humano, uma participação voltada para o incremento de atitudes que fortaleçam o bem-estar e promovam melhorias coletivas tem um papel de extrema relevância. Identificar e reconhecer os benefícios do envolvimento direto em práticas altruístas é passível de aprendizado. Tais atitudes fortalecem os laços sociais. As desigualdades tendem a diminuir, o ambiente geral melhora e, consequentemente, todos são beneficiados.

A atuação social que impera na atualidade está centrada no egoísmo. As atitudes individuais e coletivas demonstram isso. A forma como tratamos o planeta, desmatando e mudando o curso da natureza de forma insensível revela muito sobre as práticas que aprendemos a enxergar como naturais. O assim chamado “preço do progresso” parece justificar o injustificável, e preferimos chamar de catástrofes as respostas da natureza. As grandes calamidades são sentidas através da busca dos porquês como se, em certa medida, o homem não fosse em grande parte o responsável por tais tragédias.  Nas relações sociais acontece da mesma forma. Habitamos os grandes centros, nos adaptando a relações superficiais e, na maioria das vezes, insatisfatórias, e muitas vezes sequer olhamos nos olhos das pessoas que nos rodeiam. Desviamos o olhar da dor do outro, evocando uma blindagem que desumaniza. Aprendemos a não enxergar o nosso próximo, que de próximo, não tem nada. Em contrapartida, o coletivo cobra o preço, pois somos todos interligados, de forma que o sofrimento do outro nos faz sofrer, ainda que sequer tenhamos possibilidade de identificar esse sentimento, de tão distantes que estamos da nossa essência. 

Desviamos o olhar da dor do outro, evocando uma blindagem que desumaniza.

Uma forma comprovadamente eficaz de se desenvolver e melhorar – e muito, o meio onde se vive é o trabalho voluntário, e se engana quem pensa no voluntariado como passar longas horas dando sopa aos necessitados ou separando as roupas que não queremos mais para os trabalhadores domésticos de forma automática. Pequenas modificações na nossa rotina são realmente milagrosas. Atitudes como olhar nos olhos dos que estão mais perto como o funcionário do supermercado, um bom dia com empatia, reconhecer a humanidade e a semelhança entre as pessoas que nos cercam, escolher no seu acervo um livro que considere relevante e ofertar, dar uma palavra de alento ou incentivo são capazes de liberar os hormônios do bem-estar e esse pode ser o ponto alto do seu dia. 

A biologia nos explica os benefícios do trabalho voluntário. Ao ajudarmos outras pessoas, liberamos endorfinas, neurotransmissores que espalham pelo corpo sensações de bem-estar e induzem estados de felicidade e realização. Também a carga de stress tende a diminuir significativamente. 

Ao nos dedicarmos ao próximo, nossa maneira de perceber o mundo e, consequente, a nós mesmos, sofre uma alteração qualitativa. Desenvolve-se a verdadeira empatia. Uma vez que você aprimora sua escuta e amplia o seu olhar, perceber e respeitar a situação dos outros torna-se um processo natural e o desenvolvimento pessoal acontece de forma rica e significativa. 

Muitas vezes nos percebemos questionando o sentido e o significado da existência, e uma excelente forma de nos aproximarmos dessas questões é a pratica da empatia, buscar melhorar a vida de alguém, ainda que por alguns instantes. 

As ações de voluntariado auxiliam o fortalecimento da saúde física, mental e espiritual. De acordo com Allan Luks, em seu livro The Healing Power of Doing Good, que em livre tradução do inglês significa o poder curativo de fazer o bem, enfatiza que “Quem realiza pelo menos quatro horas de trabalho voluntário por mês tem dez vezes mais chances de ter uma boa saúde do que quem não o faz”. Fica evidenciado, dessa forma, que o voluntariado é uma rede de troca que fortalece todos os envolvidos, independente do lado que estamos, se de ajudador ou de ajudado, mostrando que essas são meras categorizações que não necessariamente nos definem, pois todos somos beneficiados por essas trocas.

Infelizmente existe uma verdadeira indústria de exploração que nos intimida e pode desencorajar as sementes do altruísmo. Nunca teremos certeza de que aquele dinheiro ofertado à uma criança que nos aborda na porta da padaria não vai parar nas mãos de algum traficante que a explora. Assim como temos critérios nas nossas ações, também a construção da prática do voluntariado requer escolhas.

A sabedoria é democrática e mora em lugares inusitados. 

 Para evitarmos cair na cilada de pessoas inescrupulosas que infelizmente usam a própria necessidade como forma de exploração, vale a pena nos dedicar um pouco a essa escolha. Para trabalhos mais demorados, escolha instituições sérias que se dedicam a auxiliar pessoas. Não há, necessariamente, que envolver gastos. A doação do tempo e do interesse em servir o próximo são de valor incalculável. A visita a lares de idosos para conversar e aprender com eles, ler histórias, abrir espaço para que estes compartilhem suas memórias e aliviem suas dores e solidão, nos beneficia com lições preciosas.  Também as crianças são capazes de nos contagiar com sua alegria apesar das dificuldades. Conversar com elas, desenhar, ler, brincar e contar histórias pode ser transformador. Empenhar-se em ajudar alguém próximo que ainda não é alfabetizado ou não possui fluência nas letras, aproximando-se do seu mundo ao compartilhar notícias cotidianas e ouvir o que se pensa a esse respeito nos faz relativizar nossas opiniões. A sabedoria é democrática e mora em lugares inusitados. Não existe nenhum ser humano que não precise aprender e ninguém que não seja capaz de ensinar. Seja um incentivador real das pessoas próximas. Os animais são professores incríveis quando se trata de empatia. São capazes de ofertar afeto e sensibilidade de forma igualitária. Muitas vezes as pessoas privam seus animais de estimação de interagir com os desconhecidos, desperdiçando uma excelente oportunidade de estabelecer vínculos, ainda que momentâneos, que podem aliviar o próximo. Também e possível agir também através dos animais. Quando não os privamos de exercitar sua simpatia, eles podem ser excelentes terapeutas. Não e à toa que há, em muitos países, existe a figura do cão terapeuta que visita pacientes nos hospitais quando de suas internações, em sessões de quimioterapia, e oferecerem suporte emocional para pessoas em situação de vulnerabilidade, sendo capazes de contagiar positivamente os pacientes. Os benefícios são inúmeros, desde a diminuição da dor, o alívio da solidão e a redução de stress. Eles ultrapassam os muros que nós levantamos. Há ainda as formas inusitadas de realizar as trocas altruístas. Descobrir a sua forma de ajudar também pode ser um excelente exercício. Acredite no potencial da troca, invista no desenvolvimento humano. A doação ao próximo tem um potencial terapêutico incrível.

Bibliografia

LUKS, Allan, The Healing Power of Doing Good, Universe, 2001.

Viva Voluntario. Benefícios para quem faz trabalho voluntario. Disponível em https://vivavoluntario.com.br/2018/08/27/beneficios-para-quem-faz-trabalho-voluntario. Acesso em 30 de dezembro de 2020.

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Psicoterapia

Psicoterapia

Durante muito tempo na minha prática clínica, ao ser questionada a respeito do que é a psicoterapia, busquei fornecer informações claras e de cunho prático. Sem dúvida elas são necessárias, e confesso que vez ou outra ainda me valho desse recurso. Entretanto, a compreensão do processo psicoterapêutico, que é mediado por um psicólogo, requer um olhar mais amplo do que o ofertado pela etimologia da palavra – de origem grega, psyche que significa mente + therapeuein, o ato de curar, de forma que me permito fazer uso de uma licença poética nessa empreitada. 

Fundamentalmente, trata-se de um processo que objetiva ampliar a visão, que é um sentido básico e corriqueiro, que se não apresenta distorções, torna-se, paradoxalmente, invisível, automatizado e subjugado.

Talvez por se tratar de um ato prosaico não percebemos a sua importância, muito menos os seus desdobramentos. Como dizia Rubem Alves, ver é muito complicado. De acordo com ele, “isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica a física óptica de uma máquina fotográfica – o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física…”

Para auxiliar a transcendência da visão, surge a psicoterapia. Trata-se de enxergar, não apenas de ver. O objetivo é ampliar o olhar, explorando aspectos que dificultam a fluência da pessoa no manejo do dia a dia e que trazem sofrimento ou, muitas vezes, o adoecimento psíquico. 

A psicoterapia é um processo que pode trazer inúmeros benefícios. Trata-se de um caminho de ressignificação dos modos de pensar e de agir, ampliando as habilidades de escuta multidimensional – para dentro e para fora, para cima e para baixo e para os dois lados, e de comunicação, competências fundamentais para a construção de relacionamentos mais saudáveis. Os ganhos são evidentes, desde a melhoria da saúde integral quanto o ganho de confiança, aumento da capacidade de tomada de decisões, práticas de enfrentamento de situações difíceis, habilidades de aceitação e gestão dos processos da vida, dentre muitas outras. 

Entretanto, são comuns os relatos que evidenciam que uma das principais razões que levam a pessoa a não empreender um processo psicoterapêutico é a falta de argumentos para justificar – para os outros e para si mesma a necessidade ou os benefícios do tratamento. Apesar de bastante divulgada, a prática da psicoterapia ainda é alvo de preconceitos e estereótipos, frutos do desconhecimento acerca das vantagens e benefícios que ela pode proporcionar para todos os que se dispõem a lançar mãos desse recurso. Por vezes, a busca pela psicoterapia é uma jornada solitária, na qual a pessoa pode não encontrar apoio e acolhimento da família e amigos. Contudo, se existe uma necessidade ou mesmo o desejo de buscar autoconhecimento, vale a pena ouvir esse chamado considerar encarar o desafio. 

De acordo com Carl Gustav Jung, “constata-se o desenvolvimento no processo analítico – ou na psicoterapia, grifo meu, a partir do confronto dialético do consciente com o inconsciente, gerando um progresso em direção a uma meta ou fim”. Em outras palavras, esse confronto gera a desmobilização e a readequação de padrões de pensamentos e ações em diferentes aspectos da vida, sendo capaz de proporcionar clareza, aceitação das limitações e impactos das situações imutáveis e oferecer a possibilidade de ressignificação dos sentimentos envolvidos, além de desenvolver o senso de responsabilidade.

Por se tratar de um processo que envolve tempo e disponibilidade, a psicoterapia requer motivação – o que não significa estar contente e animado, sendo também necessária prontidão para lidar com a frustração, o que geralmente se desenvolve durante o próprio processo psicoterapêutico, num relacionamento construído com base no respeito, ausência de preconceito e isenção de quaisquer julgamentos. À medida que a visão vai se ampliando e a consciência aumentando através da dilatação das esferas de compreensão, o autoconhecimento começa a acontecer. Como consequência, abandonamos a visão imediatista e unilateral e passamos a enxergar e a fazer descobertas. Muitas delas difíceis, e outras fascinantes. Todas, entretanto, quando bem elaboradas, são libertadoras. Nesse momento, existe a possibilidade de mudança. E um ato de coragem. Segundo Robert Holden, a verdadeira psicoterapia é o processo de modificar seu modo de se ver. A mudança acontece sempre que você pratica a autoaceitação incondicional, sempre que você se dá um tempo. A mudança acontece sempre que você opta pela bondade no lugar do julgamento, pelo perdão em vez da autoagressão, pelo riso e não pela condenação. A vida sempre melhora quando você se trata melhor.

Na optometria, que mede o poder e a amplitude da visão, se afirma que “a visão se aprende, portanto, se pode treinar”. A psicoterapia consiste em treinar a relação da pessoa consigo mesma, num processo contínuo de criação e ampliação da consciência, na busca de entender e aliviar o sofrimento através do autoconhecimento, da abertura às novas possibilidades de sentido e significado da existência, que transcende o simples ato de existir, transformando-se em vida plena. Busca-se transformar a informação em conhecimento, e este, em sabedoria. Afinal, “a árvore que o sábio vê não é a mesma que o tolo vê” – William Blake.

Queremos ter certezas e não dúvidas, resultados e não experiências, mas nem mesmo percebemos que as certezas só podem surgir através das dúvidas e os resultados somente através das experiências – Carl Gustav Jung.

Por ser uma prática baseada na palavra, a psicoterapia é comumente confundida com aconselhamento, mentoria, treino de assertividade, coaching e afins. Entretanto, essa é uma distorção que necessita ser devidamente esclarecida. Durante o processo psicoterapêutico a pessoa é auxiliada pelo psicólogo a identificar, refletir e compreender as raízes do próprio sofrimento psíquico, com vistas à readequação de conduta e consequente alívio do desconforto, bem como a desenvolver ferramentas para evitar a repetição de padrões de pensamento e atitudes que se opõem ao desenvolvimento saudável e levam ao adoecimento psíquico. 

Para a condução desse processo, que tem o diálogo como sua principal ferramenta, é necessário um profissional devidamente habilitado e preparado, comprometido com os preceitos éticos da profissão. Visando lograr êxito nessa tarefa, o psicólogo se vale de conhecimento teórico e metodológico, aprofundamento e atualização constantes, além de um amplo trabalho de análise pessoal. Em alguns casos pode ser requerida a supervisão clínica, ou seja, um olhar complementar sobre a demanda por parte de outro psicólogo para enriquecer o entendimento da situação. 

Por se tratar de um processo individualizado, a duração do tratamento, bem como a frequência e o tempo das sessões de psicoterapia serão definidas de acordo com o referencial teórico adotado, o perfil e as necessidades apresentadas, assim como a evolução do tratamento, podendo ser revistos a qualquer momento que se fizer necessário. Ao buscar um profissional, é importante certificar-se de que o mesmo esteja devidamente habilitado e inscrito no Conselho Regional de Psicologia, bem como buscar referências adicionais sobre a atuação do profissional em questão. Uma consideração que reputo importante na busca por um psicólogo é a experimentação. Marque um horário, observe a sua reação à sessão inicial e, caso sinta necessidade, marque com outro profissional. Nem sempre a primeira escolha é a que melhor te atende. Trata-se de um relacionamento a se desenvolver, portanto, é fundamental que ocorra afinidade entre as partes. Não adianta ser o profissional mais qualificado do mercado, mas não suscitar em você conforto e confiança.  A construção da relação terapêutica entre o psicólogo e o cliente deve ser estabelecida num ambiente seguro e sigiloso. Os temas abordados serão, muitas vezes, sensíveis e desafiadores, sendo em algumas oportunidades, bastante dolorosos, de forma que se torna fundamental que se estabeleça uma parceria prolífica. 

A psicoterapia é uma das mais poderosas ferramentas de autoconhecimento. É democrática, inclusiva e um ato de amor próprio. 

Bibliografia

ALVES, Rubem. A complicada arte de se ver. Disponível em www1.folha.uol.com.br

MENEZES, Jasper. Pare com a autossabotagem. Disponível em www.oamor.com.br

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2015.

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Parentalidade Atípica

Parentalidade Atípica

Meu filho é atípico

Quando nasce um filho, somos tomados por toda a sorte de emoções.  Não sabemos ao certo o que esperar. Às vezes até achamos que sabemos, e o fato é que as expectativas – boas ou assustadoras, são palavra de ordem nessa ocasião. Uma gama de sentimentos – muitas vezes contraditórios, nos assalta. Euforia, entusiasmo, medos e preocupações diversas figuram dentre as distintas emoções que nos visitam, muitas vezes simultaneamente, e conduzem nossas mentes e corações a uma viagem numa montanha russa de loops intermináveis. Até aí tudo certo, acontece com todo mundo. Entretanto, a situação pode sair completamente do nosso ilusório controle.    

Quando nos preparamos ou simplesmente nos deparamos com o nascimento de um filho, quase nunca traçamos nossos planos parentais levando em conta a ocorrência de situações negativamente inesperadas. E elas não só podem acontecer como, de fato, acontecem. Ocorre que dessa vez não foi na casa do vizinho. Definitivamente, alguma coisa está muito diferente e tudo parece estar fora do lugar. Muitas vezes a descoberta se dá ainda na gestação, em outras situações após o nascimento, e muitas ao longo do desenvolvimento infantil, em especial durante a primeira infância, período em que as habilidades e competências da criança se tornam mais perceptíveis e as diferenças tendem a ganhar uma desconcertante visibilidade. Começa a roda desenfreada da procura pelo diagnóstico, que pode se concretizar de forma precoce, tardia ou até mesmo nunca ser definido. 

Poucas situações são tão devastadoras quanto a descoberta da diferença de um filho. O chão se abre, formando uma cratera emocional que, quer queiram ou não, será a assustadora e indesejada moradia emocional inicial ou até mesmo definitiva dessa família. 

Uma ciranda de emoções e sentimentos intensos são vivenciados, muitos dos quais como medo, raiva, culpa, revolta e muito sofrimento. Tais emoções podem ser tão são assustadoras que os pais tendem a sufocá-las, de forma inconsciente, em nome de uma cultura coletiva de desumanização da pessoa dos pais, como se a parentalidade isentasse a condição humana. Quase todos, invariavelmente, ao redor dos pais, se colocam na posição de conselheiros – verbalizadores ou não, pois muitas vezes o não falar fala, ainda que dotados de intenções de ajuda, mas que terminam por gerar nos pais ainda mais angústia e dúvidas. Os outros filhos, caso existam, entram na roda também. O relacionamento afetivo dos parceiros em muitos casos perece desastrosamente, isso sem falar nos que são pais em carreira solo. 

Precisamos falar abertamente sobre as emoções desses pais. Sem meias palavras, buscando ser o mais isento possível de julgamentos e preconceitos, com humildade e coragem, ou seja, agindo com o coração, pois coragem é agir com o coração, e não deveria ser sinônimo de bravura.

Essa tarefa pode parecer simples e fácil, mas não é, e muitas são as razões. Em primeiro lugar, não somos encorajados e tampouco fomos acostumados a olhar para dentro de nós mesmos. E, quando olhamos, o que quer que venhamos a descobrir se converte em verdadeiros segredos de alcova. Não se trata de sair por aí anunciando aos quatro ventos as nossas emoções, pois isso terminaria em piorar ainda mais a situação que já é, por definição, de muita vulnerabilidade, mas estar atento à forma como esses sentimentos podem comprometer a nossa caminhada.

Muito se fala de autoconhecimento, mas pouco se faz a esse respeito, especialmente no seio das famílias. Crescemos ouvindo que os filhos são sempre uma bênção – o que não é objeto da nossa reflexão, mas está aqui para exemplificar quão idealizado, romanceado e velado é o exercício da parentalidade na nossa cultura, e em especial, a parentalidade atípica. Afinal, somos pais porque somos humanos. Os pais de crianças atípicas se tornam objeto de extrema curiosidade, se veem constantemente invadidos por olhares, perguntas, explicações sem fim, sem falar nas manifestações como dor e lamento que os cercam, dentre tantos outros que os reduzem à condição de pessoas diferentes, com problemas, roubando-lhes o direito à dignidade de continuar a existir apenas e tão somente como seres humanos frente a novos e grandes desafios. Nem mais, nem menos. 

Nossa proposta é um diálogo franco e aberto com os pais de crianças atípicas. Seus medos, dificuldades, dores, cansaço, vitórias e todo o universo desconhecido, desafiador, solitário e definitivo que a parentalidade atípica descortina por sobre os olhos dessas pessoas. Naturalmente, quando sonhamos e planejamos um filho, apesar de sabermos que não há garantias de que a criança que chegar estará, pelo menos inicialmente, em plenas condições de saúde, ainda assim o filho esperado é quase sempre uma criança idealizada. Afinal, a prevalência estatística de nascimento de crianças típicas é infinitamente superior quando comparada à de crianças atípicas, e assim seguimos com relativa tranquilidade, aguardando ansiosamente a hora em que vamos conhecer o novo bebê e levá-lo para o seu quartinho cuidadosamente decorado e prontos para as cólicas, noites mal ou não dormidas, idas ao pediatra, babás e outras descobertas entre fraldas e mamadeiras. Certo? sim e não! 

Ocorre que, no caso de crianças atípicas, tudo isso e muita, mas muita emoção vem pela frente. Nossos pais (heróis?) agora, parafraseando Jorge Vercilo, são desafiados a aguentar bem mais que o peso das contas do mês, que aliás, vão aumentar e muito.

Para explorar um pouco desse universo desafiador, a Vocatum Psicologia disponibiliza a série Parentalidade Atípica, que vai tratar de forma simples, acessível e nada romanceada sobre o mundo desses pais, que quase sempre se encontram num infinito estado de autoanulação e autonegligência que a situação parece exigir. Mas não precisa ser assim, não tem que ser assim, não deve ser assim. Pais que se negligenciam e se anulam excessivamente, ainda que em favor da imperiosa doação amorosa ao filho atípico, tendem a viver esgotados, geralmente tornam-se muito ressentidos em razão do acúmulo de sofrimento, podendo adoecer e até mesmo comprometer a qualidade do cuidado ofertado aos outros filhos, parceiros, trabalho, relações sociais e, inclusive, as necessidades do filho atípico. Definitivamente, esse quadro não é nada atraente, apesar de assustadoramente prevalente. Mas, e então, o quer fazer

Como na vida, na parentalidade e, em especial na parentalidade atípica, não há fórmulas nem receitas. No entanto, um recurso comprovadamente eficaz é falar abertamente sobre aquilo que nos acomete, e o primeiro passo para falar é aprender sobre a condição humana, e esse é o nosso convite. Sim, sobre a condição humana, pois absolutamente tudo o que somos, sentimos, amamos, detestamos e fugimos mais nada mais é do que as emoções tipicamente humanas vindo à tona. A proposta aqui é a identificação, reconhecimento e legitimação da singularidade dos pais, buscando a libertação do peso da capa de herói, através do acesso a materiais diversos, depoimentos, entrevistas, dicas de leitura, vídeos e muito mais.  Se você se identificou ou se interessou por essa empreitada, te convido para juntos debatermos sobre os sentimentos típicos de pais atípicos, as diferenças que os assemelham e a condição humana. Essa série é sobre o José que habita em nós, pois somos todos Josés, quer saibamos disso ou não. Simples assim.

José

E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? E agora, você? Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? E agora, José?
Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?
E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio — e agora?
Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas,
Minas não há mais. José, e agora?
Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse…
Mas você não morre, você é duro, José!
Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?

Carlos Drummond de Andrade

Bibliografia

ANDRADE, Carlos Drummond. José. José Olympio, 1942.

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Autoconhecimento

A Era do Cansaço

Estamos vivendo um tempo – já faz tempo, aliás, de manifestações muito particulares à respeito do cansaço crônico que assola boa parte da humanidade, despertando o interesse de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento desde a medicina até a filosofia. Certamente a pandemia mundial de COVID-19 tem um papel importante nessa discussão, uma vez que fomos todos de certa forma condenados a situações atípicas que desencadearam, dentre outros sintomas, muito cansaço. Entretanto, a pandemia atual apenas trouxe à baila o que já estava prestes a eclodir. Trata-se de um cenário anterior e multifacetado. 

A tecnologia tem se desenvolvido em larga escala e hoje dispomos de facilidades impensáveis há vinte anos. Confortos múltiplos, comunicação instantânea, informação abundante, muita tecnologia e uma incapacidade desconcertante de desligar e descansar. Estamos aprisionados. Como resultado, podemos pensar no aumento do imediatismo, relações cada vez mais superficiais, dificuldade de tomar decisões sustentáveis e satisfatórias, cobranças infinitas e um aumento expressivo de estados físicos e psicológicos que têm o cansaço em suas origens e/ou como consequências, num ciclo de retroalimentação preocupante.

Vivemos mergulhados na cultura do self made man e suas variantes, expressão esta que foi cunhada por ninguém menos que Benjamin Franklin, considerado o pai do empreendedorismo norte-americano, em sua máxima “Quem tem caráter trabalha, trabalha, trabalha e vence.”  Ocorre que, como toda premissa que se perpetua, a ideia do self made man se ampliou, ganhando novos contornos e permeando boa parte da estrutura social entendida como ideal, tornando-se um dos pilares de conduta social do mundo ocidental, e qualquer situação fora disso é arbitrariamente questionada.

Para alcançar esses padrões, muitas vezes nos convertemos em seres autômatos, com baixa ou nenhuma capacidade de crítica eficiente e quase sempre incapazes de questionar a respeito dos paradigmas tidos como ideais e autoimpostos.

Um dos braços dessa discussão alicerça o modelo de sucesso que nos orienta, um ideal a ser perseguido e alcançado. Temos que ser bem-sucedidos em todas as áreas. Carreira, família, dinheiro, status social, beleza, magreza, juventude, dentre tantos outros. Enfim, nada escapa a esse radar. Para alcançar esses padrões, muitas vezes nos convertemos em seres autômatos, com baixa ou nenhuma capacidade de crítica eficiente e quase sempre incapazes de questionar a respeito dos paradigmas tidos como ideais e autoimpostos.

O acesso à informação nunca foi tão rápido e facilitado. Paradoxalmente, nunca estivemos tão carentes de conhecimento e sabedoria.  O corpo, a saúde e os valores se converteram em meios para alcançar resultados exitosos. Mutilamos nosso corpo, pois precisamos estar belos aos olhos dos outros, uma vez que o olhar individual e singular, que acolhe as diferenças, há muito já não basta. A saúde precisa ser sempre muito bem resolvida. Quando adoecemos, buscamos uma solução rápida e indolor, sem ao menos nos perguntarmos as razões que contribuíram para o adoecimento, desperdiçando uma valiosa oportunidade de crescimento. Sofrimento? Dispomos de uma infinidade de medicamentos que nos anestesiam e induzem estados artificiais de bem-estar, e assim seguimos caminhando, cada vez mais distantes e desconectados de nós mesmos e dos outros.

Os relacionamentos se tornaram líquidos, conforme denunciou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. De acordo com o autor, vivemos num mundo de muitas incertezas, de cada um por si. Os relacionamentos são instáveis, uma vez que as relações humanas estão cada vez mais flexíveis. Nos adaptamos tanto ao mundo virtual e sua agilidade de “desconectar-se”, que as pessoas não conseguem manter um relacionamento de longo prazo. Trata-se de um amor criado pela sociedade atual – na modernidade líquida, para tirar das pessoas a responsabilidade de relacionamentos sérios e duradouros. As pessoas estão sendo tratadas como bens de consumo, ou seja, caso haja defeito descarta-se – ou até mesmo troca-se por “versões mais atualizadas.”  Trocando em miúdos, tiramos e somos tirados da vida das pessoas em apenas um click. Seguindo mutilando a nossa história. Quanta praticidade, não?

Quando adoecemos, buscamos uma solução rápida e indolor, sem ao menos nos perguntarmos as razões que contribuíram para o adoecimento, desperdiçando uma valiosa oportunidade de crescimento. 

Pelo que constatamos tudo se tornou muito acessível, fato que apresenta grandes vantagens, indubitavelmente, desde que nossas ações sejam parcimoniosas e equilibradas, visando o bem-estar individual e coletivo. Contudo, algo não mudou – a nossa condição humana. Apesar da nossa constante evolução, somos seres de natureza e capacidades limitadas. A saúde se deteriora e inevitavelmente vamos morrer, inclusive porque a morte faz parte da vida. O corpo muda com o tempo, as funções se alteram e todos envelhecemos, ainda que em ritmos diferentes. Nossa produtividade não é linear, nem sempre alcançaremos êxito e sucesso em todas as áreas da nossa vida, e tampouco o conseguimos continuamente. Nem todos nascem em conformidade com os voláteis padrões estéticos da época a qual pertencem, tidos como belos e bons, e é crueldade consigo mesmo não aceitar e honrar o corpo que habitamos. Nossas famílias não são e certamente nunca serão perfeitas, uma vez que as famílias são formadas por pessoas, e isso basta.

Apesar da nossa constante evolução, somos seres de natureza e capacidades limitadas.

A busca por melhorias e crescimento por si só tende a ser saudável boa parte das vezes. Afinal, sem uma grande dose de motivação e trabalho árduo, renúncias mil e muita persistência, corre-se o risco de ficar estagnado, o que não parece ideal. O que podemos e devemos avaliar é o preço que pagamos na busca desenfreada e desmedida pela obtenção de sucesso com base no custe o que custar. Quando o custo dessas conquistas é exacerbado, pode comprometer muitos outros aspectos da vida, gerando um grande desequilíbrio. Nesses casos, o ideal de vida precisa ser revisitado, reavaliado e muitas vezes alterado, para então ser acolhido. Nossas escolhas precisam ser encaradas, examinadas sob perspectiva, e a vida posta na balança. Leva tempo, exige coragem e renúncia. 

Somos seres singulares, únicos, com contornos individualizados, de forma que parece incoerente e arbitrário imputar à todos a adequação ao mesmo modelo social. Mas, de fato, quando não aprendemos a desenvolver um pensamento crítico e diferenciado, nos permitimos ser massacrados pela cultura dominante e somos tentados, sem que muitas vezes não tenhamos nenhuma consciência disso, a nos julgarmos, e pior – nos condenarmos por não responder satisfatoriamente a tais padrões, sentindo-nos fracassados e frustrados. 

Talvez essa seja uma das razões para tanto cansaço. Nos encontramos num permanente estado de tentativa de enquadramento em formas que não necessariamente – ou quase nunca, são compatíveis com o nosso modelo. Já não é mais suficiente atendermos as leis e códigos de conduta coletivos, temos também que obedecer ao mandato social de sucesso, ser o self made man  bem-sucedido em tudo o tempo todo. Definitivamente, tanta cobrança cansa, esgota. A busca por alcançar e atender a tantos padrões pode desencadear um estado de profunda desconexão do ser, que não mais suporta existir como um eu desconhecido, alijado de si mesmo, incapaz de se aceitar, se respeitar e se cuidar a partir de lugares internos sólidos e sustentáveis. Caetano Veloso, na música Dom de Iludir, já disse que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, mas parece que a delícia já não mais nos acompanha e a dor tomou conta de nós, manifesta na forma de ansiedade, vazio existencial, falta de sentido, dentre outras. Incomoda a ideia de que talvez tenhamos desaprendido a importante habilidade de enxergarmos nossas próprias dores e de nos regozijarmos com as nossas delícias particulares. Na busca desenfreada pelo sucesso, o insucesso surge como uma sombra que assombra. Não é de se espantar que o cansaço tenha se tornado crônico e coletivo, assolado por frequentes episódios de agudicidade. Uma das possibilidades extremamente válidas que possibilitam a quebra – ainda que parcial, desse círculo vicioso e aprisionador aponta para o autoconhecimento, que é a estrada para a autoaceitação consciente, não mágica nem fantástica, a serviço do eu, da liberdade de ser quem se é, da plenitude possível à condição humana, que não tem a pretensão, e tampouco nenhum compromisso em atender às imposições sombrias e muitas vezes perversas do mandato do self made man.

Nossas escolhas precisam ser encaradas, examinadas sob perspectiva, e a vida posta na balança. Leva tempo, exige coragem e renúncia.

Precisamos dialogar com o cansaço, convidá-lo para tomar uma bebida quente – ou gelada, ouvi-lo, deixar sair. O cansaço é, de fato, um sintoma de época, coletivo. Assim como na época de Sigmund Freud, o pai da psicanálise, irromperam as histerias e neuroses à serviço das necessidades e dores coletivas daquele tempo e que só depois de ouvidas e acolhidas puderam ser relativizadas, urge olhar a serviço do que estamos tão cansados. Vale lembrar, sobretudo, que a coletividade é formada pelo conjunto de indivíduos, e isso por si só já diz tudo. Não se entende as demandas coletivas sem olhar para as necessidades individuais. Não se atende o coletivo sem respeitar a singularidade.

“Aqueles que não aprendem nada sobre os fatos desagradáveis de suas vidas forçam a consciência cósmica que os reproduza tantas vezes quanto seja necessário, para aprender o que ensina o drama do que aconteceu. O que negas te submete. O que aceitas te transforma”. 

Carl G. Jung

Dialogar com o cansaço. Ele pode ser um ótimo mestre. Essa é a ideia e o chamado. Como parece?

Bibliografia

HOPCKE, Robert H. – Guia para obra completa de Jung – 3ª ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.