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Parentalidade Atípica

A luta e o luto na Parentalidade Atípica

Quando se perde um filho, simbolicamente, nesse caso o filho idealizado que não nasceu conforme as expectativas parentais, os pais quase sempre vivenciam, ainda que de forma inconsciente, um processo de luto, de maneira individual e permeada pela cultura.

Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente.

William Shakespeare

Falar sobre a temática do luto na parentalidade atípica requer um olhar sistêmico para lograrmos, pelo menos em parte, um melhor entendimento a respeito desse fenômeno tão complexo e desafiador. Nesse contexto, nosso enfoque é sobre o processo de luto precipitado pelas características diferentes da criança que nasceu em razão da morte da idealização filial à qual estão sujeitos os pais. 

Aqui cabe considerar que o luto é um fenômeno universal, constituído de aspectos fisiológicos, psicológicos, sociais e espirituais que, juntos e em diferentes proporções, formam a complexa teia sobre a qual se vivencia esse período. Apesar de ser um processo comum à todos, a expressão dessa vivência é absolutamente singular para cada pessoa, o que requer um olhar que compreenda diferentes dimensões e suas possíveis manifestações.

Na condição de seres vivos, todos os dias vivemos um pouco e também morremos um pouco. As mortes podem ser reais ou simbólicas. Algumas delas são veladas, outras públicas. Na parentalidade atípica, estamos tratando da morte simbólica e, na maioria das vezes, pública. Nesse contexto podemos entender morte simbólica como qualquer processo de perda representativa que nos afeta pela diferença entre o que se espera e o que de fato se apresenta, ou seja, pelo rompimento de padrões esperados em detrimento de uma realidade, quase sempre indesejada e até mesmo temida, podendo causar intenso sofrimento psíquico e precipitando o acometimento do estado de luto. 

Quando se perde um filho, simbolicamente, nesse caso o filho idealizado que não nasceu conforme as expectativas parentais, os pais quase sempre vivenciam, ainda que de forma inconsciente, um processo de luto, de forma individual e permeada pela cultura.

A morte simbólica, entretanto, é um tema tabu – fato que não deveria causar estranheza, uma vez que a morte física, inerente à própria existência, até hoje é um assunto que desencadeia reações polarizadas como terror e fascínio, e encabeça intensas discussões que vão desde a filosofia, passa pela ciência e chega até a religião, sendo que nenhuma dessas vertentes parece fornecer explicações capazes de acolher a todos. O fato é que o homem não quer morrer, de sorte que toda morte, real ou simbólica, desencadeia certo grau de comoção. Como lidar, então, com a morte simbólica que a parentalidade atípica impõe?

Quando se perde um filho, simbolicamente, nesse caso o filho idealizado que não nasceu conforme as expectativas parentais, os pais quase sempre vivenciam, ainda que de forma inconsciente, um processo de luto, de forma individual e permeada pela cultura (compreendemos como cultura, nesse caso, o conjunto de influências familiares, sociais, religiosas, econômicas, psicológicas e fisiológicas que podem atuar sobre a pessoa). Alguns o experimentam de forma tão intensa e avassaladora que muitas vezes se faz necessária intervenção profissional médica e/ou psicológica, a fim de auxiliar no processo de ressignificação da experiência da perda e da nova realidade que se apresenta.

A chegada de um filho atípico é uma experiência individual e singular, que geralmente traz consigo um luto próprio, uma vez que as concessões e adaptações que se impõem são muito intensas, sonhos são desfeitos, expectativas frustradas e as estratégias anteriormente pensadas se mostram quase sempre ineficazes e predomina um cenário permeado de incertezas. A interrupção da continuidade do fluxo familiar esperado costuma causar uma sensação de vazio no seio dessa família. Esse novo cenário evoca um diálogo intenso – consciente ou não, muitas vezes doloroso da pessoa consigo mesma, e responder à essas demandas pode despertar emoções perturbadoras, que preferíamos não ter que encarar.

Nesse cenário, todas as vivências são singulares, onde cada um dos pares e também na relação como casal, quando for o caso, dotados de aspectos e manifestações próprias, em consonância com suas histórias de vida, da maneira como experimentaram a vivência como filhos, distintas formas de lidar com o desconhecido e características individuais, dentre outras. O fato é que a parentalidade atípica geralmente demanda a construção de uma nova identidade, e é justamente através e durante a elaboração desse luto simbólico que o espaço para essa nova identidade encontra força para emergir, uma vez que as mudanças decorrentes desse processo vão requerer alterações de vida significativas, em especial no tocante à visão de mundo e do próprio papel como sujeito.

O fato é que a parentalidade atípica geralmente demanda a construção de uma nova identidade, e é justamente através e durante a elaboração desse luto simbólico que o espaço para essa nova identidade encontra força para emergir

Há, porém, uma dinâmica que pode dificultar sobremaneira a elaboração do luto pela perda do filho idealizado na parentalidade atípica, que é a urgência em cuidar das necessidades distintas da criança real, a rotina quase sempre estafante e infinita da busca pela confirmação do diagnóstico, diferentes terapias, dieta especial, restrições e adaptações de diferentes ordens, a batalha que muitas vezes se trava pela cobertura dos tratamentos pelo convênio médico – quando se pode contar com esse recurso, dentre tantas outras peculiaridades, enquanto tudo continua a requerer dos pais, pois os compromissos não param, e até aumentam muito, o trabalho exige, os outros filhos também, a família estendida e seus questionamentos e opiniões – ainda que imiscuídos das melhores intenções quase sempre são uma obrigação a mais, explicações intermináveis, os amigos e uma infinidade de arestas a serem aparadas que levam os pais a um constante deitar sobre uma cama de faquir, onde acabam por abafar o luto o que, em geral, costuma cobrar um alto preço posteriormente. Não é incomum os pais desencadearem doenças como depressão, transtorno de ansiedade, pânico, e por aí vai, além de muitas vezes a convivência dos pares enquanto casal se tornar insuportável. 

O luto emerge, quer você admita ou não, quer esteja consciente ou não, e, se não vivenciado e elaborado, tende a ser eternizado, trazendo consequências indesejáveis, precipitando uma vida aprisionada pela morte simbólica.

Precisamos dar espaço para o luto. A rachadura da semente é a abertura para que ela brote. E sim, você é apenas um ser humano, que provavelmente não escolheria ter um filho atípico, inclusive porque você o ama, não quer que ele tenha sofrimentos e dificuldades adicionais e também não quer sofrer, e tudo bem encarar esse sentimento. O luto emerge, quer você admita ou não, quer esteja consciente ou não, e, se não vivenciado e elaborado, tende a ser eternizado, trazendo consequências indesejáveis, precipitando uma vida aprisionada pela morte simbólica. Um luto elaborado – e esse não é um processo indolor, pode ser libertador, além de dar espaço para o exercício da parentalidade atípica saudável, que aceita e acolhe, de verdade, as diferenças. Lutar pela elaboração do luto, e não para evitar o luto. Luto, sem luta, aprisiona. Luto, acolhido e vivenciado, capacita. Sem deixar sair o filho idealizado, dificilmente se pode aceitar plenamente o filho real.

Deus costuma usar a solidão
Para nos ensinar sobre a convivência.
Às vezes, usa a raiva para que possamos
Compreender o infinito valor da paz.
Outras vezes usa o tédio, quando quer
nos mostrar a importância da aventura e do abandono.
Deus costuma usar o silêncio para nos ensinar
sobre a responsabilidade do que dizemos.
Às vezes usa o cansaço, para que possamos
Compreender o valor do despertar.
Outras vezes usa a doença, quando quer
Nos mostrar a importância da saúde.
Deus costuma usar o fogo,
para nos ensinar a andar sobre a água.
Às vezes, usa a terra, para que possamos
Compreender o valor do ar.
Outras vezes usa a morte, quando quer
Nos mostrar a importância da vida.

Paulo Coelho

Bibliografia

BARCELLOS, Bruno Fernandes. O luto é um umbigo. Disponível em https://www.pensador.com/frase/MTk2NzE5MA/. Acesso em 01 de novembro em 2020.

COELHO, Paulo. Importância da vida. Disponível em https://www.mensagemcomamor.com/. Acesso em 01 de novembro em 2020.