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Desenvolvimento Humano

Desenvolvimento Humano

O desenvolvimento é um conceito amplo, objeto de estudo de diferentes ciências, que compreende diversos aspectos como os fatores biológicos, sociais e psicológicos. As características individuais, assim como as diversas expressões da cultura, dentre outros fatores, são interiorizadas e possibilitam o desenvolvimento e a formação da personalidade. 

Dessa forma, há que se considerar o impacto que as interações sociais, manifesto através das diferentes formas de convivência e cooperação, tem sobre o indivíduo.

O desenvolvimento humano está diretamente ligado à habilidade de ampliação das possibilidades e capacidades disponíveis, onde se incluem as dinâmicas sociais, econômicas, políticas e ambientais. 

Com tantas implicações, a contribuição individual pode estar enfraquecida pela falta de ênfase na sua relevância nesse processo. Atualmente, o modo de funcionamento da sociedade ocidental parece oferecer certos obstáculos ao estabelecimento de relações sociais baseadas em troca e cooperação. O foco na individualidade e independência, aliado aos excessos da vida moderna – informação, produtividade e sucesso, parecem enfraquecer a teia sobre a qual repousam as relações coletivas. Esse conjunto de fatores aponta para a necessidade do fortalecimento de relações paritárias que forneçam insumos para o desenvolvimento humano, de forma que voltarmos o olhar para tais necessidades e nos dedicarmos a ações de promoção à saúde social parece altamente benéfico.

Dentre os diferentes elementos que coadunam para o desenvolvimento humano, uma participação voltada para o incremento de atitudes que fortaleçam o bem-estar e promovam melhorias coletivas tem um papel de extrema relevância. Identificar e reconhecer os benefícios do envolvimento direto em práticas altruístas é passível de aprendizado. Tais atitudes fortalecem os laços sociais. As desigualdades tendem a diminuir, o ambiente geral melhora e, consequentemente, todos são beneficiados.

A atuação social que impera na atualidade está centrada no egoísmo. As atitudes individuais e coletivas demonstram isso. A forma como tratamos o planeta, desmatando e mudando o curso da natureza de forma insensível revela muito sobre as práticas que aprendemos a enxergar como naturais. O assim chamado “preço do progresso” parece justificar o injustificável, e preferimos chamar de catástrofes as respostas da natureza. As grandes calamidades são sentidas através da busca dos porquês como se, em certa medida, o homem não fosse em grande parte o responsável por tais tragédias.  Nas relações sociais acontece da mesma forma. Habitamos os grandes centros, nos adaptando a relações superficiais e, na maioria das vezes, insatisfatórias, e muitas vezes sequer olhamos nos olhos das pessoas que nos rodeiam. Desviamos o olhar da dor do outro, evocando uma blindagem que desumaniza. Aprendemos a não enxergar o nosso próximo, que de próximo, não tem nada. Em contrapartida, o coletivo cobra o preço, pois somos todos interligados, de forma que o sofrimento do outro nos faz sofrer, ainda que sequer tenhamos possibilidade de identificar esse sentimento, de tão distantes que estamos da nossa essência. 

Desviamos o olhar da dor do outro, evocando uma blindagem que desumaniza.

Uma forma comprovadamente eficaz de se desenvolver e melhorar – e muito, o meio onde se vive é o trabalho voluntário, e se engana quem pensa no voluntariado como passar longas horas dando sopa aos necessitados ou separando as roupas que não queremos mais para os trabalhadores domésticos de forma automática. Pequenas modificações na nossa rotina são realmente milagrosas. Atitudes como olhar nos olhos dos que estão mais perto como o funcionário do supermercado, um bom dia com empatia, reconhecer a humanidade e a semelhança entre as pessoas que nos cercam, escolher no seu acervo um livro que considere relevante e ofertar, dar uma palavra de alento ou incentivo são capazes de liberar os hormônios do bem-estar e esse pode ser o ponto alto do seu dia. 

A biologia nos explica os benefícios do trabalho voluntário. Ao ajudarmos outras pessoas, liberamos endorfinas, neurotransmissores que espalham pelo corpo sensações de bem-estar e induzem estados de felicidade e realização. Também a carga de stress tende a diminuir significativamente. 

Ao nos dedicarmos ao próximo, nossa maneira de perceber o mundo e, consequente, a nós mesmos, sofre uma alteração qualitativa. Desenvolve-se a verdadeira empatia. Uma vez que você aprimora sua escuta e amplia o seu olhar, perceber e respeitar a situação dos outros torna-se um processo natural e o desenvolvimento pessoal acontece de forma rica e significativa. 

Muitas vezes nos percebemos questionando o sentido e o significado da existência, e uma excelente forma de nos aproximarmos dessas questões é a pratica da empatia, buscar melhorar a vida de alguém, ainda que por alguns instantes. 

As ações de voluntariado auxiliam o fortalecimento da saúde física, mental e espiritual. De acordo com Allan Luks, em seu livro The Healing Power of Doing Good, que em livre tradução do inglês significa o poder curativo de fazer o bem, enfatiza que “Quem realiza pelo menos quatro horas de trabalho voluntário por mês tem dez vezes mais chances de ter uma boa saúde do que quem não o faz”. Fica evidenciado, dessa forma, que o voluntariado é uma rede de troca que fortalece todos os envolvidos, independente do lado que estamos, se de ajudador ou de ajudado, mostrando que essas são meras categorizações que não necessariamente nos definem, pois todos somos beneficiados por essas trocas.

Infelizmente existe uma verdadeira indústria de exploração que nos intimida e pode desencorajar as sementes do altruísmo. Nunca teremos certeza de que aquele dinheiro ofertado à uma criança que nos aborda na porta da padaria não vai parar nas mãos de algum traficante que a explora. Assim como temos critérios nas nossas ações, também a construção da prática do voluntariado requer escolhas.

A sabedoria é democrática e mora em lugares inusitados. 

 Para evitarmos cair na cilada de pessoas inescrupulosas que infelizmente usam a própria necessidade como forma de exploração, vale a pena nos dedicar um pouco a essa escolha. Para trabalhos mais demorados, escolha instituições sérias que se dedicam a auxiliar pessoas. Não há, necessariamente, que envolver gastos. A doação do tempo e do interesse em servir o próximo são de valor incalculável. A visita a lares de idosos para conversar e aprender com eles, ler histórias, abrir espaço para que estes compartilhem suas memórias e aliviem suas dores e solidão, nos beneficia com lições preciosas.  Também as crianças são capazes de nos contagiar com sua alegria apesar das dificuldades. Conversar com elas, desenhar, ler, brincar e contar histórias pode ser transformador. Empenhar-se em ajudar alguém próximo que ainda não é alfabetizado ou não possui fluência nas letras, aproximando-se do seu mundo ao compartilhar notícias cotidianas e ouvir o que se pensa a esse respeito nos faz relativizar nossas opiniões. A sabedoria é democrática e mora em lugares inusitados. Não existe nenhum ser humano que não precise aprender e ninguém que não seja capaz de ensinar. Seja um incentivador real das pessoas próximas. Os animais são professores incríveis quando se trata de empatia. São capazes de ofertar afeto e sensibilidade de forma igualitária. Muitas vezes as pessoas privam seus animais de estimação de interagir com os desconhecidos, desperdiçando uma excelente oportunidade de estabelecer vínculos, ainda que momentâneos, que podem aliviar o próximo. Também e possível agir também através dos animais. Quando não os privamos de exercitar sua simpatia, eles podem ser excelentes terapeutas. Não e à toa que há, em muitos países, existe a figura do cão terapeuta que visita pacientes nos hospitais quando de suas internações, em sessões de quimioterapia, e oferecerem suporte emocional para pessoas em situação de vulnerabilidade, sendo capazes de contagiar positivamente os pacientes. Os benefícios são inúmeros, desde a diminuição da dor, o alívio da solidão e a redução de stress. Eles ultrapassam os muros que nós levantamos. Há ainda as formas inusitadas de realizar as trocas altruístas. Descobrir a sua forma de ajudar também pode ser um excelente exercício. Acredite no potencial da troca, invista no desenvolvimento humano. A doação ao próximo tem um potencial terapêutico incrível.

Bibliografia

LUKS, Allan, The Healing Power of Doing Good, Universe, 2001.

Viva Voluntario. Benefícios para quem faz trabalho voluntario. Disponível em https://vivavoluntario.com.br/2018/08/27/beneficios-para-quem-faz-trabalho-voluntario. Acesso em 30 de dezembro de 2020.

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Psicoterapia

Psicoterapia

Durante muito tempo na minha prática clínica, ao ser questionada a respeito do que é a psicoterapia, busquei fornecer informações claras e de cunho prático. Sem dúvida elas são necessárias, e confesso que vez ou outra ainda me valho desse recurso. Entretanto, a compreensão do processo psicoterapêutico, que é mediado por um psicólogo, requer um olhar mais amplo do que o ofertado pela etimologia da palavra – de origem grega, psyche que significa mente + therapeuein, o ato de curar, de forma que me permito fazer uso de uma licença poética nessa empreitada. 

Fundamentalmente, trata-se de um processo que objetiva ampliar a visão, que é um sentido básico e corriqueiro, que se não apresenta distorções, torna-se, paradoxalmente, invisível, automatizado e subjugado.

Talvez por se tratar de um ato prosaico não percebemos a sua importância, muito menos os seus desdobramentos. Como dizia Rubem Alves, ver é muito complicado. De acordo com ele, “isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica a física óptica de uma máquina fotográfica – o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física…”

Para auxiliar a transcendência da visão, surge a psicoterapia. Trata-se de enxergar, não apenas de ver. O objetivo é ampliar o olhar, explorando aspectos que dificultam a fluência da pessoa no manejo do dia a dia e que trazem sofrimento ou, muitas vezes, o adoecimento psíquico. 

A psicoterapia é um processo que pode trazer inúmeros benefícios. Trata-se de um caminho de ressignificação dos modos de pensar e de agir, ampliando as habilidades de escuta multidimensional – para dentro e para fora, para cima e para baixo e para os dois lados, e de comunicação, competências fundamentais para a construção de relacionamentos mais saudáveis. Os ganhos são evidentes, desde a melhoria da saúde integral quanto o ganho de confiança, aumento da capacidade de tomada de decisões, práticas de enfrentamento de situações difíceis, habilidades de aceitação e gestão dos processos da vida, dentre muitas outras. 

Entretanto, são comuns os relatos que evidenciam que uma das principais razões que levam a pessoa a não empreender um processo psicoterapêutico é a falta de argumentos para justificar – para os outros e para si mesma a necessidade ou os benefícios do tratamento. Apesar de bastante divulgada, a prática da psicoterapia ainda é alvo de preconceitos e estereótipos, frutos do desconhecimento acerca das vantagens e benefícios que ela pode proporcionar para todos os que se dispõem a lançar mãos desse recurso. Por vezes, a busca pela psicoterapia é uma jornada solitária, na qual a pessoa pode não encontrar apoio e acolhimento da família e amigos. Contudo, se existe uma necessidade ou mesmo o desejo de buscar autoconhecimento, vale a pena ouvir esse chamado considerar encarar o desafio. 

De acordo com Carl Gustav Jung, “constata-se o desenvolvimento no processo analítico – ou na psicoterapia, grifo meu, a partir do confronto dialético do consciente com o inconsciente, gerando um progresso em direção a uma meta ou fim”. Em outras palavras, esse confronto gera a desmobilização e a readequação de padrões de pensamentos e ações em diferentes aspectos da vida, sendo capaz de proporcionar clareza, aceitação das limitações e impactos das situações imutáveis e oferecer a possibilidade de ressignificação dos sentimentos envolvidos, além de desenvolver o senso de responsabilidade.

Por se tratar de um processo que envolve tempo e disponibilidade, a psicoterapia requer motivação – o que não significa estar contente e animado, sendo também necessária prontidão para lidar com a frustração, o que geralmente se desenvolve durante o próprio processo psicoterapêutico, num relacionamento construído com base no respeito, ausência de preconceito e isenção de quaisquer julgamentos. À medida que a visão vai se ampliando e a consciência aumentando através da dilatação das esferas de compreensão, o autoconhecimento começa a acontecer. Como consequência, abandonamos a visão imediatista e unilateral e passamos a enxergar e a fazer descobertas. Muitas delas difíceis, e outras fascinantes. Todas, entretanto, quando bem elaboradas, são libertadoras. Nesse momento, existe a possibilidade de mudança. E um ato de coragem. Segundo Robert Holden, a verdadeira psicoterapia é o processo de modificar seu modo de se ver. A mudança acontece sempre que você pratica a autoaceitação incondicional, sempre que você se dá um tempo. A mudança acontece sempre que você opta pela bondade no lugar do julgamento, pelo perdão em vez da autoagressão, pelo riso e não pela condenação. A vida sempre melhora quando você se trata melhor.

Na optometria, que mede o poder e a amplitude da visão, se afirma que “a visão se aprende, portanto, se pode treinar”. A psicoterapia consiste em treinar a relação da pessoa consigo mesma, num processo contínuo de criação e ampliação da consciência, na busca de entender e aliviar o sofrimento através do autoconhecimento, da abertura às novas possibilidades de sentido e significado da existência, que transcende o simples ato de existir, transformando-se em vida plena. Busca-se transformar a informação em conhecimento, e este, em sabedoria. Afinal, “a árvore que o sábio vê não é a mesma que o tolo vê” – William Blake.

Queremos ter certezas e não dúvidas, resultados e não experiências, mas nem mesmo percebemos que as certezas só podem surgir através das dúvidas e os resultados somente através das experiências – Carl Gustav Jung.

Por ser uma prática baseada na palavra, a psicoterapia é comumente confundida com aconselhamento, mentoria, treino de assertividade, coaching e afins. Entretanto, essa é uma distorção que necessita ser devidamente esclarecida. Durante o processo psicoterapêutico a pessoa é auxiliada pelo psicólogo a identificar, refletir e compreender as raízes do próprio sofrimento psíquico, com vistas à readequação de conduta e consequente alívio do desconforto, bem como a desenvolver ferramentas para evitar a repetição de padrões de pensamento e atitudes que se opõem ao desenvolvimento saudável e levam ao adoecimento psíquico. 

Para a condução desse processo, que tem o diálogo como sua principal ferramenta, é necessário um profissional devidamente habilitado e preparado, comprometido com os preceitos éticos da profissão. Visando lograr êxito nessa tarefa, o psicólogo se vale de conhecimento teórico e metodológico, aprofundamento e atualização constantes, além de um amplo trabalho de análise pessoal. Em alguns casos pode ser requerida a supervisão clínica, ou seja, um olhar complementar sobre a demanda por parte de outro psicólogo para enriquecer o entendimento da situação. 

Por se tratar de um processo individualizado, a duração do tratamento, bem como a frequência e o tempo das sessões de psicoterapia serão definidas de acordo com o referencial teórico adotado, o perfil e as necessidades apresentadas, assim como a evolução do tratamento, podendo ser revistos a qualquer momento que se fizer necessário. Ao buscar um profissional, é importante certificar-se de que o mesmo esteja devidamente habilitado e inscrito no Conselho Regional de Psicologia, bem como buscar referências adicionais sobre a atuação do profissional em questão. Uma consideração que reputo importante na busca por um psicólogo é a experimentação. Marque um horário, observe a sua reação à sessão inicial e, caso sinta necessidade, marque com outro profissional. Nem sempre a primeira escolha é a que melhor te atende. Trata-se de um relacionamento a se desenvolver, portanto, é fundamental que ocorra afinidade entre as partes. Não adianta ser o profissional mais qualificado do mercado, mas não suscitar em você conforto e confiança.  A construção da relação terapêutica entre o psicólogo e o cliente deve ser estabelecida num ambiente seguro e sigiloso. Os temas abordados serão, muitas vezes, sensíveis e desafiadores, sendo em algumas oportunidades, bastante dolorosos, de forma que se torna fundamental que se estabeleça uma parceria prolífica. 

A psicoterapia é uma das mais poderosas ferramentas de autoconhecimento. É democrática, inclusiva e um ato de amor próprio. 

Bibliografia

ALVES, Rubem. A complicada arte de se ver. Disponível em www1.folha.uol.com.br

MENEZES, Jasper. Pare com a autossabotagem. Disponível em www.oamor.com.br

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2015.

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Parentalidade Atípica

Parentalidade Atípica

Meu filho é atípico

Quando nasce um filho, somos tomados por toda a sorte de emoções.  Não sabemos ao certo o que esperar. Às vezes até achamos que sabemos, e o fato é que as expectativas – boas ou assustadoras, são palavra de ordem nessa ocasião. Uma gama de sentimentos – muitas vezes contraditórios, nos assalta. Euforia, entusiasmo, medos e preocupações diversas figuram dentre as distintas emoções que nos visitam, muitas vezes simultaneamente, e conduzem nossas mentes e corações a uma viagem numa montanha russa de loops intermináveis. Até aí tudo certo, acontece com todo mundo. Entretanto, a situação pode sair completamente do nosso ilusório controle.    

Quando nos preparamos ou simplesmente nos deparamos com o nascimento de um filho, quase nunca traçamos nossos planos parentais levando em conta a ocorrência de situações negativamente inesperadas. E elas não só podem acontecer como, de fato, acontecem. Ocorre que dessa vez não foi na casa do vizinho. Definitivamente, alguma coisa está muito diferente e tudo parece estar fora do lugar. Muitas vezes a descoberta se dá ainda na gestação, em outras situações após o nascimento, e muitas ao longo do desenvolvimento infantil, em especial durante a primeira infância, período em que as habilidades e competências da criança se tornam mais perceptíveis e as diferenças tendem a ganhar uma desconcertante visibilidade. Começa a roda desenfreada da procura pelo diagnóstico, que pode se concretizar de forma precoce, tardia ou até mesmo nunca ser definido. 

Poucas situações são tão devastadoras quanto a descoberta da diferença de um filho. O chão se abre, formando uma cratera emocional que, quer queiram ou não, será a assustadora e indesejada moradia emocional inicial ou até mesmo definitiva dessa família. 

Uma ciranda de emoções e sentimentos intensos são vivenciados, muitos dos quais como medo, raiva, culpa, revolta e muito sofrimento. Tais emoções podem ser tão são assustadoras que os pais tendem a sufocá-las, de forma inconsciente, em nome de uma cultura coletiva de desumanização da pessoa dos pais, como se a parentalidade isentasse a condição humana. Quase todos, invariavelmente, ao redor dos pais, se colocam na posição de conselheiros – verbalizadores ou não, pois muitas vezes o não falar fala, ainda que dotados de intenções de ajuda, mas que terminam por gerar nos pais ainda mais angústia e dúvidas. Os outros filhos, caso existam, entram na roda também. O relacionamento afetivo dos parceiros em muitos casos perece desastrosamente, isso sem falar nos que são pais em carreira solo. 

Precisamos falar abertamente sobre as emoções desses pais. Sem meias palavras, buscando ser o mais isento possível de julgamentos e preconceitos, com humildade e coragem, ou seja, agindo com o coração, pois coragem é agir com o coração, e não deveria ser sinônimo de bravura.

Essa tarefa pode parecer simples e fácil, mas não é, e muitas são as razões. Em primeiro lugar, não somos encorajados e tampouco fomos acostumados a olhar para dentro de nós mesmos. E, quando olhamos, o que quer que venhamos a descobrir se converte em verdadeiros segredos de alcova. Não se trata de sair por aí anunciando aos quatro ventos as nossas emoções, pois isso terminaria em piorar ainda mais a situação que já é, por definição, de muita vulnerabilidade, mas estar atento à forma como esses sentimentos podem comprometer a nossa caminhada.

Muito se fala de autoconhecimento, mas pouco se faz a esse respeito, especialmente no seio das famílias. Crescemos ouvindo que os filhos são sempre uma bênção – o que não é objeto da nossa reflexão, mas está aqui para exemplificar quão idealizado, romanceado e velado é o exercício da parentalidade na nossa cultura, e em especial, a parentalidade atípica. Afinal, somos pais porque somos humanos. Os pais de crianças atípicas se tornam objeto de extrema curiosidade, se veem constantemente invadidos por olhares, perguntas, explicações sem fim, sem falar nas manifestações como dor e lamento que os cercam, dentre tantos outros que os reduzem à condição de pessoas diferentes, com problemas, roubando-lhes o direito à dignidade de continuar a existir apenas e tão somente como seres humanos frente a novos e grandes desafios. Nem mais, nem menos. 

Nossa proposta é um diálogo franco e aberto com os pais de crianças atípicas. Seus medos, dificuldades, dores, cansaço, vitórias e todo o universo desconhecido, desafiador, solitário e definitivo que a parentalidade atípica descortina por sobre os olhos dessas pessoas. Naturalmente, quando sonhamos e planejamos um filho, apesar de sabermos que não há garantias de que a criança que chegar estará, pelo menos inicialmente, em plenas condições de saúde, ainda assim o filho esperado é quase sempre uma criança idealizada. Afinal, a prevalência estatística de nascimento de crianças típicas é infinitamente superior quando comparada à de crianças atípicas, e assim seguimos com relativa tranquilidade, aguardando ansiosamente a hora em que vamos conhecer o novo bebê e levá-lo para o seu quartinho cuidadosamente decorado e prontos para as cólicas, noites mal ou não dormidas, idas ao pediatra, babás e outras descobertas entre fraldas e mamadeiras. Certo? sim e não! 

Ocorre que, no caso de crianças atípicas, tudo isso e muita, mas muita emoção vem pela frente. Nossos pais (heróis?) agora, parafraseando Jorge Vercilo, são desafiados a aguentar bem mais que o peso das contas do mês, que aliás, vão aumentar e muito.

Para explorar um pouco desse universo desafiador, a Vocatum Psicologia disponibiliza a série Parentalidade Atípica, que vai tratar de forma simples, acessível e nada romanceada sobre o mundo desses pais, que quase sempre se encontram num infinito estado de autoanulação e autonegligência que a situação parece exigir. Mas não precisa ser assim, não tem que ser assim, não deve ser assim. Pais que se negligenciam e se anulam excessivamente, ainda que em favor da imperiosa doação amorosa ao filho atípico, tendem a viver esgotados, geralmente tornam-se muito ressentidos em razão do acúmulo de sofrimento, podendo adoecer e até mesmo comprometer a qualidade do cuidado ofertado aos outros filhos, parceiros, trabalho, relações sociais e, inclusive, as necessidades do filho atípico. Definitivamente, esse quadro não é nada atraente, apesar de assustadoramente prevalente. Mas, e então, o quer fazer

Como na vida, na parentalidade e, em especial na parentalidade atípica, não há fórmulas nem receitas. No entanto, um recurso comprovadamente eficaz é falar abertamente sobre aquilo que nos acomete, e o primeiro passo para falar é aprender sobre a condição humana, e esse é o nosso convite. Sim, sobre a condição humana, pois absolutamente tudo o que somos, sentimos, amamos, detestamos e fugimos mais nada mais é do que as emoções tipicamente humanas vindo à tona. A proposta aqui é a identificação, reconhecimento e legitimação da singularidade dos pais, buscando a libertação do peso da capa de herói, através do acesso a materiais diversos, depoimentos, entrevistas, dicas de leitura, vídeos e muito mais.  Se você se identificou ou se interessou por essa empreitada, te convido para juntos debatermos sobre os sentimentos típicos de pais atípicos, as diferenças que os assemelham e a condição humana. Essa série é sobre o José que habita em nós, pois somos todos Josés, quer saibamos disso ou não. Simples assim.

José

E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? E agora, você? Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? E agora, José?
Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?
E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio — e agora?
Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas,
Minas não há mais. José, e agora?
Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse…
Mas você não morre, você é duro, José!
Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?

Carlos Drummond de Andrade

Bibliografia

ANDRADE, Carlos Drummond. José. José Olympio, 1942.

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Autoconhecimento

A Era do Cansaço

Estamos vivendo um tempo – já faz tempo, aliás, de manifestações muito particulares à respeito do cansaço crônico que assola boa parte da humanidade, despertando o interesse de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento desde a medicina até a filosofia. Certamente a pandemia mundial de COVID-19 tem um papel importante nessa discussão, uma vez que fomos todos de certa forma condenados a situações atípicas que desencadearam, dentre outros sintomas, muito cansaço. Entretanto, a pandemia atual apenas trouxe à baila o que já estava prestes a eclodir. Trata-se de um cenário anterior e multifacetado. 

A tecnologia tem se desenvolvido em larga escala e hoje dispomos de facilidades impensáveis há vinte anos. Confortos múltiplos, comunicação instantânea, informação abundante, muita tecnologia e uma incapacidade desconcertante de desligar e descansar. Estamos aprisionados. Como resultado, podemos pensar no aumento do imediatismo, relações cada vez mais superficiais, dificuldade de tomar decisões sustentáveis e satisfatórias, cobranças infinitas e um aumento expressivo de estados físicos e psicológicos que têm o cansaço em suas origens e/ou como consequências, num ciclo de retroalimentação preocupante.

Vivemos mergulhados na cultura do self made man e suas variantes, expressão esta que foi cunhada por ninguém menos que Benjamin Franklin, considerado o pai do empreendedorismo norte-americano, em sua máxima “Quem tem caráter trabalha, trabalha, trabalha e vence.”  Ocorre que, como toda premissa que se perpetua, a ideia do self made man se ampliou, ganhando novos contornos e permeando boa parte da estrutura social entendida como ideal, tornando-se um dos pilares de conduta social do mundo ocidental, e qualquer situação fora disso é arbitrariamente questionada.

Para alcançar esses padrões, muitas vezes nos convertemos em seres autômatos, com baixa ou nenhuma capacidade de crítica eficiente e quase sempre incapazes de questionar a respeito dos paradigmas tidos como ideais e autoimpostos.

Um dos braços dessa discussão alicerça o modelo de sucesso que nos orienta, um ideal a ser perseguido e alcançado. Temos que ser bem-sucedidos em todas as áreas. Carreira, família, dinheiro, status social, beleza, magreza, juventude, dentre tantos outros. Enfim, nada escapa a esse radar. Para alcançar esses padrões, muitas vezes nos convertemos em seres autômatos, com baixa ou nenhuma capacidade de crítica eficiente e quase sempre incapazes de questionar a respeito dos paradigmas tidos como ideais e autoimpostos.

O acesso à informação nunca foi tão rápido e facilitado. Paradoxalmente, nunca estivemos tão carentes de conhecimento e sabedoria.  O corpo, a saúde e os valores se converteram em meios para alcançar resultados exitosos. Mutilamos nosso corpo, pois precisamos estar belos aos olhos dos outros, uma vez que o olhar individual e singular, que acolhe as diferenças, há muito já não basta. A saúde precisa ser sempre muito bem resolvida. Quando adoecemos, buscamos uma solução rápida e indolor, sem ao menos nos perguntarmos as razões que contribuíram para o adoecimento, desperdiçando uma valiosa oportunidade de crescimento. Sofrimento? Dispomos de uma infinidade de medicamentos que nos anestesiam e induzem estados artificiais de bem-estar, e assim seguimos caminhando, cada vez mais distantes e desconectados de nós mesmos e dos outros.

Os relacionamentos se tornaram líquidos, conforme denunciou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. De acordo com o autor, vivemos num mundo de muitas incertezas, de cada um por si. Os relacionamentos são instáveis, uma vez que as relações humanas estão cada vez mais flexíveis. Nos adaptamos tanto ao mundo virtual e sua agilidade de “desconectar-se”, que as pessoas não conseguem manter um relacionamento de longo prazo. Trata-se de um amor criado pela sociedade atual – na modernidade líquida, para tirar das pessoas a responsabilidade de relacionamentos sérios e duradouros. As pessoas estão sendo tratadas como bens de consumo, ou seja, caso haja defeito descarta-se – ou até mesmo troca-se por “versões mais atualizadas.”  Trocando em miúdos, tiramos e somos tirados da vida das pessoas em apenas um click. Seguindo mutilando a nossa história. Quanta praticidade, não?

Quando adoecemos, buscamos uma solução rápida e indolor, sem ao menos nos perguntarmos as razões que contribuíram para o adoecimento, desperdiçando uma valiosa oportunidade de crescimento. 

Pelo que constatamos tudo se tornou muito acessível, fato que apresenta grandes vantagens, indubitavelmente, desde que nossas ações sejam parcimoniosas e equilibradas, visando o bem-estar individual e coletivo. Contudo, algo não mudou – a nossa condição humana. Apesar da nossa constante evolução, somos seres de natureza e capacidades limitadas. A saúde se deteriora e inevitavelmente vamos morrer, inclusive porque a morte faz parte da vida. O corpo muda com o tempo, as funções se alteram e todos envelhecemos, ainda que em ritmos diferentes. Nossa produtividade não é linear, nem sempre alcançaremos êxito e sucesso em todas as áreas da nossa vida, e tampouco o conseguimos continuamente. Nem todos nascem em conformidade com os voláteis padrões estéticos da época a qual pertencem, tidos como belos e bons, e é crueldade consigo mesmo não aceitar e honrar o corpo que habitamos. Nossas famílias não são e certamente nunca serão perfeitas, uma vez que as famílias são formadas por pessoas, e isso basta.

Apesar da nossa constante evolução, somos seres de natureza e capacidades limitadas.

A busca por melhorias e crescimento por si só tende a ser saudável boa parte das vezes. Afinal, sem uma grande dose de motivação e trabalho árduo, renúncias mil e muita persistência, corre-se o risco de ficar estagnado, o que não parece ideal. O que podemos e devemos avaliar é o preço que pagamos na busca desenfreada e desmedida pela obtenção de sucesso com base no custe o que custar. Quando o custo dessas conquistas é exacerbado, pode comprometer muitos outros aspectos da vida, gerando um grande desequilíbrio. Nesses casos, o ideal de vida precisa ser revisitado, reavaliado e muitas vezes alterado, para então ser acolhido. Nossas escolhas precisam ser encaradas, examinadas sob perspectiva, e a vida posta na balança. Leva tempo, exige coragem e renúncia. 

Somos seres singulares, únicos, com contornos individualizados, de forma que parece incoerente e arbitrário imputar à todos a adequação ao mesmo modelo social. Mas, de fato, quando não aprendemos a desenvolver um pensamento crítico e diferenciado, nos permitimos ser massacrados pela cultura dominante e somos tentados, sem que muitas vezes não tenhamos nenhuma consciência disso, a nos julgarmos, e pior – nos condenarmos por não responder satisfatoriamente a tais padrões, sentindo-nos fracassados e frustrados. 

Talvez essa seja uma das razões para tanto cansaço. Nos encontramos num permanente estado de tentativa de enquadramento em formas que não necessariamente – ou quase nunca, são compatíveis com o nosso modelo. Já não é mais suficiente atendermos as leis e códigos de conduta coletivos, temos também que obedecer ao mandato social de sucesso, ser o self made man  bem-sucedido em tudo o tempo todo. Definitivamente, tanta cobrança cansa, esgota. A busca por alcançar e atender a tantos padrões pode desencadear um estado de profunda desconexão do ser, que não mais suporta existir como um eu desconhecido, alijado de si mesmo, incapaz de se aceitar, se respeitar e se cuidar a partir de lugares internos sólidos e sustentáveis. Caetano Veloso, na música Dom de Iludir, já disse que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, mas parece que a delícia já não mais nos acompanha e a dor tomou conta de nós, manifesta na forma de ansiedade, vazio existencial, falta de sentido, dentre outras. Incomoda a ideia de que talvez tenhamos desaprendido a importante habilidade de enxergarmos nossas próprias dores e de nos regozijarmos com as nossas delícias particulares. Na busca desenfreada pelo sucesso, o insucesso surge como uma sombra que assombra. Não é de se espantar que o cansaço tenha se tornado crônico e coletivo, assolado por frequentes episódios de agudicidade. Uma das possibilidades extremamente válidas que possibilitam a quebra – ainda que parcial, desse círculo vicioso e aprisionador aponta para o autoconhecimento, que é a estrada para a autoaceitação consciente, não mágica nem fantástica, a serviço do eu, da liberdade de ser quem se é, da plenitude possível à condição humana, que não tem a pretensão, e tampouco nenhum compromisso em atender às imposições sombrias e muitas vezes perversas do mandato do self made man.

Nossas escolhas precisam ser encaradas, examinadas sob perspectiva, e a vida posta na balança. Leva tempo, exige coragem e renúncia.

Precisamos dialogar com o cansaço, convidá-lo para tomar uma bebida quente – ou gelada, ouvi-lo, deixar sair. O cansaço é, de fato, um sintoma de época, coletivo. Assim como na época de Sigmund Freud, o pai da psicanálise, irromperam as histerias e neuroses à serviço das necessidades e dores coletivas daquele tempo e que só depois de ouvidas e acolhidas puderam ser relativizadas, urge olhar a serviço do que estamos tão cansados. Vale lembrar, sobretudo, que a coletividade é formada pelo conjunto de indivíduos, e isso por si só já diz tudo. Não se entende as demandas coletivas sem olhar para as necessidades individuais. Não se atende o coletivo sem respeitar a singularidade.

“Aqueles que não aprendem nada sobre os fatos desagradáveis de suas vidas forçam a consciência cósmica que os reproduza tantas vezes quanto seja necessário, para aprender o que ensina o drama do que aconteceu. O que negas te submete. O que aceitas te transforma”. 

Carl G. Jung

Dialogar com o cansaço. Ele pode ser um ótimo mestre. Essa é a ideia e o chamado. Como parece?

Bibliografia

HOPCKE, Robert H. – Guia para obra completa de Jung – 3ª ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.

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Autoconhecimento

Nomofobia

Vivemos em rede. Somos, querendo ou não, entes conectantes vivendo interconectados. A tecnologia invadiu o nosso cotidiano de forma avassaladora. Muitas das nossas ações cotidianas são mediadas pelas TICs – Tecnologias de Informação e Comunicação, fato que pode trazer inúmeros benefícios, quando bem administrado.

A simples ideia de ficar desconectado pode desencadear uma verdadeira comoção de proporções muitas vezes comprometedoras.

Cada época desenvolve características próprias, sendo marcada por suas glórias e mazelas. Temos acesso a uma enorme quantidade de produtos e serviços digitais – inclusive muitas relações interpessoais, de forma que é esperado um aumento significativo do lugar de importância que a internet passou a ocupar na vida contemporânea. O lado perverso de toda essa facilidade é a enorme capacidade de causar sérios prejuízos à saúde física e psíquica que o uso indiscriminado da internet pode desencadear, sem falar nos prejuízos de ordem social e coletiva.

Dentre esses possíveis comprometimentos encontra-se a nomofobia, que é a fobia desencadeada pelo desconforto ou angústia resultante da incapacidade de acesso à comunicação através de aparelhos celulares, tablets ou computadores de modo geral. A simples ideia de ficar desconectado pode desencadear uma verdadeira comoção de proporções muitas vezes comprometedoras.

O termo é originário da Inglaterra, e deriva da expressão no-mobile, que significa sem celular, acrescido do sufixo fobos, palavra grega que simboliza medo ou fobia. Essa junção cunhou a palavra nomofobia, também conhecida como dependência digital, condição que gera impactos negativos à saúde do indivíduo, com implicações físicas, psicológicas e sociais.

De acordo com estudiosos do tema, os portadores da nomofobia tendem a apresentar paralelamente alguma outra condição de saúde associada, como transtornos de ansiedade, pânico, transtorno obsessivo-compulsivo ou agorafobia, dentre outros, que atuam como base ou facilitadores para o surgimento da dependência digital. Se identificado algum outro transtorno, pode ser necessária a implementação de terapia medicamentosa, sempre prescrita por um profissional habilitado, no caso o médico especialista – psiquiatra.

Quando as interações com o mundo virtual ameaçam a habilidade ou o interesse da permanência no mundo real, deve ser avaliada a possibilidade da existência de dependência, que se não identificada e tratada adequadamente, tende a ocasionar inúmeras perdas, inclusive a ausência de controle da própria vida.

Os prejuízos que a nomofobia pode acarretar são inúmeros. Ansiedade, angústia, taquicardia, sudorese intensa, depressão, isolamento social, inabilidade nas relações interpessoais, problemas de postura, insônia, agitação psicomotora e transtornos da visão, dentre muitos outros, são os mais facilmente identificados. Contudo, o uso contínuo das tecnologias da informação por si só não caracteriza dependência. O contexto deve ser avaliado. Na atualidade, em decorrência das inúmeras restrições impostas à população mundial em razão da pandemia de COVID-19, a tecnologia assumiu um protagonismo inevitável, mas certamente perigoso. 

A dependência digital se caracteriza pelo uso excessivo e lesivo da tecnologia, acarretando perdas diversas para a pessoa acometida. Quando as interações com o mundo virtual ameaçam a habilidade ou o interesse da permanência no mundo real, deve ser avaliada a possibilidade da existência de dependência, que se não identificada e tratada adequadamente, tende a ocasionar inúmeras perdas, inclusive a ausência de controle da própria vida.

Outro fator preocupante é o crescimento da dependência digital entre crianças e adolescentes. A nomofobia tem assolado pessoas de todas as idades, de diferentes contextos socioeconômicos e culturais. Identificar tal condição nem sempre é simples, uma vez que a vida moderna é mediada pela presença digital e essa não é uma escolha. Não há formas viáveis de subsistência completamente à margem do uso de tecnologias, ainda que indiretamente. O simples ato de sacar dinheiro da conta bancária passa pela interação com o mundo digital. Adicionalmente, é quase sempre desconfortável se perceber dependente de qualquer situação, e a tendência maior é a negação, com justificativas racionais de que a situação está sob controle, e que é possível regular o ritmo da interação digital a qualquer instante. É comum que a constatação da condição se dê através da observação de terceiros, sejam esses parentes ou pessoas próximas.

Quando as interações com o mundo virtual ameaçam a habilidade ou o interesse da permanência no mundo real, deve ser avaliada a possibilidade da existência de dependência, que se não identificada e tratada adequadamente, tende a ocasionar inúmeras perdas, inclusive a ausência de controle da própria vida.

Dentre os fatores de risco para o surgimento da nomofobia estão a baixa autoestima, dificuldades nos relacionamentos interpessoais, uso excessivo das redes sociais e internet, interação social precária, timidez excessiva, vícios nos sistemas de recompensa das redes sociais como número de views, likes, retuites, curtidas, necessidade constante de compartilhamento de atos rotineiros da vida como uma simples refeição e comportamentos afins. Isso não significa, de modo algum, que pessoas que não apresentem os fatores de risco não possam desenvolvê-la, tampouco que os que têm predisposição irão apresentar essa condição. Os casos devem ser analisados dentro de um contexto mais amplo e de forma individualizada.

Uma forma prática de identificar possíveis sintomas de dependência digital consiste em abster-se, periodicamente, de celulares e computadores por períodos pré-determinados de tempo, como um período do dia ou até mesmo um final de semana completo e observar, de forma sincera, como foi a experiência, se possível registrando num papel as principais emoções detectadas. Os sintomas da dependência digital se manifestam de diferentes formas. Os principais sinais são ansiedade, irritação, sensação de perda de tempo, sentimentos de inutilidade, raiva, frustração, incompletude, apatia, tristeza e dificuldade de se desligar ou se concentrar em outras atividades fora da rede estão entre os mais relatados.

O Brasil é um dos países mais fortemente ligados à internet, de acordo com o Comitê Gestor de Internet no Brasil, sendo as principais atividades dos usuários brasileiros o uso de aplicativos de trocas de mensagens como WhatsApp, Skype ou Snapchat e redes sociais como Instagram e Facebook. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios realizada em 2019 pelo Centro Regional para o Desenvolvimento de Estudos sobre a Sociedade da Informação – Cetic.br, vinculado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil, três em cada quatro brasileiros acessam a internet regularmente, o que equivale a 134 milhões de pessoas. 

Apesar disso, a nomofobia ainda é timidamente divulgada no Brasil, o que dificulta um pouco a identificação do problema e a procura por tratamento. Países como o Japão, a China e a Coreia do Sul tratam a dependência digital como questão de saúde pública, onde foram criados vários centros de tratamento especializado. A Universidade Federal do Rio de Janeiro mantém um centro especializado para a detecção e tratamento da dependência digital, o Delete, que oferece tratamento multidisciplinar para o enfrentamento da patologia. Caso perceba, em você ou em alguém próximo, indicativos dessa condição, não hesite em buscar orientação profissional na sua cidade. Quanto mais cedo a detecção e a intervenção, maior o êxito do tratamento. A prática de exercícios físicos, a diminuição gradual do uso da internet e a implementação de outras formas de lazer podem ser muito úteis. Também a psicoterapia tem se mostrado extremamente eficaz para auxiliar nesse processo, podendo proporcionar mudanças qualitativas com resultados gratificantes. Nenhum algoritmo é capaz de substituir satisfatoriamente a interação humana de qualidade.

Bibliografia

Agencia Brasil. Brasil tem 134 milhões de usuários de internet. Publicado em 26/05/2020 – 16:59 Por Jonas Valente – Repórter Agência Brasil – Brasília
Atualizado em 26/05/2020 – 20:47. Disponível em http//www.agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-5/brasil-tem-mais-de-123-milhoes-de-usuarios-de-internet-aponta-pesquisa  Acesso em 10 de novembro de 2020.

Meio Bit – Ciência – Delete — Instituto brasileiro combate abuso e dependência de tecnologias digitais.  Ronaldo Gogoni. Disponível em https://www1.tecnoblog.net/meiobit/2017/brasil-instituto-delete-fundacao-trata-dependencia-digital-smartphones-games-internet-redes-sociais/. Acesso em 30 de dezembro de 2020.

Adolescentes e dependência digital – EPC – Escola Presbiteriana de Cuiabá (epcba.com.br). Disponível em https://epcba.com.br/adolescentes-e-dependencia-digital/. Acesso em 30 de dezembro de 2020.

O que é nomofobia? Entenda sobre a síndrome da dependência digital. Disponível em https://blog.psicologiaviva.com.br/. Acesso em 30 de dezembro de 2020.

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Parentalidade Atípica

A luta e o luto na Parentalidade Atípica

Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente.

William Shakespeare

Falar sobre a temática do luto na parentalidade atípica requer um olhar sistêmico para lograrmos, pelo menos em parte, um melhor entendimento a respeito desse fenômeno tão complexo e desafiador. Nesse contexto, nosso enfoque é sobre o processo de luto precipitado pelas características diferentes da criança que nasceu em razão da morte da idealização filial à qual estão sujeitos os pais. 

Aqui cabe considerar que o luto é um fenômeno universal, constituído de aspectos fisiológicos, psicológicos, sociais e espirituais que, juntos e em diferentes proporções, formam a complexa teia sobre a qual se vivencia esse período. Apesar de ser um processo comum à todos, a expressão dessa vivência é absolutamente singular para cada pessoa, o que requer um olhar que compreenda diferentes dimensões e suas possíveis manifestações.

Na condição de seres vivos, todos os dias vivemos um pouco e também morremos um pouco. As mortes podem ser reais ou simbólicas. Algumas delas são veladas, outras públicas. Na parentalidade atípica, estamos tratando da morte simbólica e, na maioria das vezes, pública. Nesse contexto podemos entender morte simbólica como qualquer processo de perda representativa que nos afeta pela diferença entre o que se espera e o que de fato se apresenta, ou seja, pelo rompimento de padrões esperados em detrimento de uma realidade, quase sempre indesejada e até mesmo temida, podendo causar intenso sofrimento psíquico e precipitando o acometimento do estado de luto. 

Quando se perde um filho, simbolicamente, nesse caso o filho idealizado que não nasceu conforme as expectativas parentais, os pais quase sempre vivenciam, ainda que de forma inconsciente, um processo de luto, de forma individual e permeada pela cultura.

A morte simbólica, entretanto, é um tema tabu – fato que não deveria causar estranheza, uma vez que a morte física, inerente à própria existência, até hoje é um assunto que desencadeia reações polarizadas como terror e fascínio, e encabeça intensas discussões que vão desde a filosofia, passa pela ciência e chega até a religião, sendo que nenhuma dessas vertentes parece fornecer explicações capazes de acolher a todos. O fato é que o homem não quer morrer, de sorte que toda morte, real ou simbólica, desencadeia certo grau de comoção. Como lidar, então, com a morte simbólica que a parentalidade atípica impõe?

Quando se perde um filho, simbolicamente, nesse caso o filho idealizado que não nasceu conforme as expectativas parentais, os pais quase sempre vivenciam, ainda que de forma inconsciente, um processo de luto, de forma individual e permeada pela cultura (compreendemos como cultura, nesse caso, o conjunto de influências familiares, sociais, religiosas, econômicas, psicológicas e fisiológicas que podem atuar sobre a pessoa). Alguns o experimentam de forma tão intensa e avassaladora que muitas vezes se faz necessária intervenção profissional médica e/ou psicológica, a fim de auxiliar no processo de ressignificação da experiência da perda e da nova realidade que se apresenta.

A chegada de um filho atípico é uma experiência individual e singular, que geralmente traz consigo um luto próprio, uma vez que as concessões e adaptações que se impõem são muito intensas, sonhos são desfeitos, expectativas frustradas e as estratégias anteriormente pensadas se mostram quase sempre ineficazes e predomina um cenário permeado de incertezas. A interrupção da continuidade do fluxo familiar esperado costuma causar uma sensação de vazio no seio dessa família. Esse novo cenário evoca um diálogo intenso – consciente ou não, muitas vezes doloroso da pessoa consigo mesma, e responder à essas demandas pode despertar emoções perturbadoras, que preferíamos não ter que encarar.

Nesse cenário, todas as vivências são singulares, onde cada um dos pares e também na relação como casal, quando for o caso, dotados de aspectos e manifestações próprias, em consonância com suas histórias de vida, da maneira como experimentaram a vivência como filhos, distintas formas de lidar com o desconhecido e características individuais, dentre outras. O fato é que a parentalidade atípica geralmente demanda a construção de uma nova identidade, e é justamente através e durante a elaboração desse luto simbólico que o espaço para essa nova identidade encontra força para emergir, uma vez que as mudanças decorrentes desse processo vão requerer alterações de vida significativas, em especial no tocante à visão de mundo e do próprio papel como sujeito.

O fato é que a parentalidade atípica geralmente demanda a construção de uma nova identidade, e é justamente através e durante a elaboração desse luto simbólico que o espaço para essa nova identidade encontra força para emergir

Há, porém, uma dinâmica que pode dificultar sobremaneira a elaboração do luto pela perda do filho idealizado na parentalidade atípica, que é a urgência em cuidar das necessidades distintas da criança real, a rotina quase sempre estafante e infinita da busca pela confirmação do diagnóstico, diferentes terapias, dieta especial, restrições e adaptações de diferentes ordens, a batalha que muitas vezes se trava pela cobertura dos tratamentos pelo convênio médico – quando se pode contar com esse recurso, dentre tantas outras peculiaridades, enquanto tudo continua a requerer dos pais, pois os compromissos não param, e até aumentam muito, o trabalho exige, os outros filhos também, a família estendida e seus questionamentos e opiniões – ainda que imiscuídos das melhores intenções quase sempre são uma obrigação a mais, explicações intermináveis, os amigos e uma infinidade de arestas a serem aparadas que levam os pais a um constante deitar sobre uma cama de faquir, onde acabam por abafar o luto o que, em geral, costuma cobrar um alto preço posteriormente. Não é incomum os pais desencadearem doenças como depressão, transtorno de ansiedade, pânico, e por aí vai, além de muitas vezes a convivência dos pares enquanto casal se tornar insuportável. 

O luto emerge, quer você admita ou não, quer esteja consciente ou não, e, se não vivenciado e elaborado, tende a ser eternizado, trazendo consequências indesejáveis, precipitando uma vida aprisionada pela morte simbólica.

Precisamos dar espaço para o luto. A rachadura da semente é a abertura para que ela brote. E sim, você é apenas um ser humano, que provavelmente não escolheria ter um filho atípico, inclusive porque você o ama, não quer que ele tenha sofrimentos e dificuldades adicionais e também não quer sofrer, e tudo bem encarar esse sentimento. O luto emerge, quer você admita ou não, quer esteja consciente ou não, e, se não vivenciado e elaborado, tende a ser eternizado, trazendo consequências indesejáveis, precipitando uma vida aprisionada pela morte simbólica. Um luto elaborado – e esse não é um processo indolor, pode ser libertador, além de dar espaço para o exercício da parentalidade atípica saudável, que aceita e acolhe, de verdade, as diferenças. Lutar pela elaboração do luto, e não para evitar o luto. Luto, sem luta, aprisiona. Luto, acolhido e vivenciado, capacita. Sem deixar sair o filho idealizado, dificilmente se pode aceitar plenamente o filho real.

Deus costuma usar a solidão
Para nos ensinar sobre a convivência.
Às vezes, usa a raiva para que possamos
Compreender o infinito valor da paz.
Outras vezes usa o tédio, quando quer
nos mostrar a importância da aventura e do abandono.
Deus costuma usar o silêncio para nos ensinar
sobre a responsabilidade do que dizemos.
Às vezes usa o cansaço, para que possamos
Compreender o valor do despertar.
Outras vezes usa a doença, quando quer
Nos mostrar a importância da saúde.
Deus costuma usar o fogo,
para nos ensinar a andar sobre a água.
Às vezes, usa a terra, para que possamos
Compreender o valor do ar.
Outras vezes usa a morte, quando quer
Nos mostrar a importância da vida.

Paulo Coelho

Bibliografia

BARCELLOS, Bruno Fernandes. O luto é um umbigo. Disponível em https://www.pensador.com/frase/MTk2NzE5MA/. Acesso em 01 de novembro em 2020.

COELHO, Paulo. Importância da vida. Disponível em https://www.mensagemcomamor.com/. Acesso em 01 de novembro em 2020.

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Psicologia do Climatério

Quando o clima esquenta – Um olhar sobre o climatério

Eis que de repente a mulher percebe algumas mudanças. A maioria delas discreta, outras mais perceptíveis e algumas de fato saltam aos olhos. As atividades rotineiras, antes despercebidas, passam a chamar a atenção. O corpo e as emoções ficam em evidência, sugerindo mudanças. Alterações corporais, geralmente ligadas ao aumento do peso corpóreo, podem surgir e insistir em não ir embora. O ritmo circadiano sofre alterações visíveis, obedecendo a comandos misteriosos, fazendo do adormecer e do despertar aventuras ansiosas. O padrão menstrual costuma sofrer alterações muitas vezes incompreensíveis, fazendo com que a tensão pré-menstrual se perpetue às vezes por quase todo o mês. Um aumento significativo de cansaço e a sensação de nunca ter descansado o suficiente causam desconforto físico e psicológico e as emoções parecem fugir ao nosso controle, ou melhor, ao controle que imaginávamos ter até então. 

O cérebro límbico – ou o sistema das emoções, unidade do cérebro responsável pelas nossas emoções, ganha um protagonismo muitas vezes desconcertante. O humor tende a se manifestar de forma intensa e instável. A sensação predominante é de envelhecimento acelerado e repentino, como se abruptamente 10 anos tivessem se passado. Somado a esse quadro, acrescenta-se o fato de que a mulher, a partir dos 40 anos, costuma estar atravessando uma fase especialmente desafiadora da vida, uma vez que os filhos comumente ainda são dependentes dela em alguns – senão em muitos aspectos. Os pais, geralmente em idade mais avançada, costumam necessitar de cuidados adicionais e despertam preocupações.

 As demandas afetivas, o trabalho e as exigências de permanência e produtividade, atreladas ao aumento significativo da expectativa de vida e das atuais condições para galgar a aposentadoria, além das inúmeras pressões sociais de perpetuação da juventude e beleza, saúde e qualidade de vida, à luz do que dita o atual contexto cultural, pode tornar esse longo trecho da vida da mulher muito parecido com a travessia das cordas no esporte radical slackline, que consiste em caminhar sobre uma corda esticada a muitos metros do chão, pé ante pé, sem pausa para descanso, de forma que qualquer desequilíbrio pode ser literalmente fatal. 

Bem-vinda ao climatério. 

As demandas sociais diversas às quais são submetidas as mulheres na cultura ocidental, que valoriza em excesso aspectos estéticos, muitas vezes em detrimento dos éticos, terminam por colocar por sobre os ombros da mulher expectativas e modelos de atuação quase desumanos. 

A vida da mulher é permeada por alterações significativas, tais como a primeira menstruação – menarca, o início da atividade sexual, a maternidade e a menopausa. De acordo com a OMS – Organização Mundial de Saúde, o climatério é uma fase biológica da vida. Assim como todas as outras, exige diversas adaptações, sendo permeada por alterações físicas, sociais e psicológicas.

 Esse período, em especial, pode propiciar o reaparecimento de dores e conflitos adormecidos, muitas vezes precipitando muito sofrimento. O corpo e as emoções da mulher passam a demandar uma nova compreensão mais acurada, requerendo flexibilidade e ajustamento frente às novas necessidades. O nosso cérebro é conhecido por ser uma máquina de repetição. Talvez essa seja uma das razões pelas quais temos certa resistência a mudanças. Tudo o que é novo assusta, e com o climatério não é diferente. Parte das mulheres relata não perceber sintomas nessa fase, mas a grande maioria aponta o surgimento de alterações significativas. 

O termo científico climatério é utilizado para descrever a fase de transição do período reprodutivo para o período não reprodutivo da mulher, e costuma apresentar-se entre os 40 e os 55 anos de idade, até a ocorrência da menopausa. Oriundo do Latim climactericus e do Grego klimakterikus, que significa período crítico ou degrau de uma escada, o climatério representa um longo período, que imputa importantes repercussões e impactos na vida da mulher.

 Alterações de natureza fisiológica, simbólica e psicológica tendem a se sobrepor, requerendo um olhar diferenciado e acolhedor durante essa travessia. Trata-se de um fenômeno universal. Entretanto, os sintomas que acometem as mulheres podem variar significativamente de acordo as percepções a respeito dessa fase no contexto cultural no qual estão inseridas, contexto esse que compreende uma série de esferas, dentre as quais se destacam a sociedade, a família, as redes de apoio, o acesso à informação, a condição socioeconômica e cultural, fatores nutricionais e condições de saúde, além da possibilidade de expressão das emoções. Alterações de natureza fisiológica, simbólica e psicológica tendem a se sobrepor, requerendo um olhar diferenciado e acolhedor durante essa travessia. 

Em razão da sua natureza multicausal, onde fatores fisiológicos – metabólicos e hormonais, além de alterações sociais – padrões comportamentais e psicológicos – expressão e manifestação dos sentimentos, o climatério constitui-se num conjunto de vivências que requerem uma atenção diferenciada, visando garantir a saúde integral e a qualidade de vida da mulher. 

Como um fenômeno biopsicossocial que acarreta perdas e transformações diversas, cada mulher vivência essa experiência de modo singular. Com a diminuição na produção dos hormônios ovarianos, podem surgir sintomas físicos e psicológicos, bem como as manifestações culturais e sociais do climatério, experimentados de forma particular para cada uma. Trata-se de mais um ciclo na vida da mulher.

É importante ressaltar que o climatério, assim como inúmeros outros processos típicos do organismo feminino, não deve ser encarado como adoecimento ou fatalidade, antes necessita ser compreendido como um evento fisiológico com implicações biopsicossociais, para o qual o corpo feminino foi projetado, com plena capacidade de êxito. A transição do período reprodutivo para o não reprodutivo dificilmente será silenciosa e assintomática.

 Apesar de ser projetada para esse período, não há garantias de que essa fase ocorrerá de forma tranquila e harmônica para todas as mulheres. As inúmeras pressões às quais estão submetidas, a indução midiática e social à não aceitação do próprio corpo, transformando-o num oráculo social de sucesso ou fracasso, a crença de que o período menstrual é uma espécie de castigo ou condenação desnecessários, o incentivo farmacológico à repressão dos processos básicos do corpo feminino como a supressão eletiva da menstruação, a busca desenfreada pela eterna juventude e inúmeras outras demandas sociais tendem a dificultar a aceitação de um organismo que prenuncia mudanças. Entretanto, elas vão, inevitavelmente, ocorrer. O ciclo evolutivo para o qual o corpo feminino foi projetado compreende essa etapa. 

A transição do período reprodutivo para o não reprodutivo dificilmente será silenciosa e assintomática. Há que se cuidar também da mente e das emoções, buscando cultivar o respeito e aceitação das funções e características inerentes ao ser feminino. Assim como na adolescência, no climatério a mulher está numa fase de transição, e o desconhecido geralmente causa estranhamento, assusta, tira da zona de conforto, podendo desencadear frustrações, estados ansiosos e até mesmo depressão. 

Apesar disso, lamentavelmente o climatério ainda é um assunto pouco discutido, em especial entre as mulheres. Nos últimos anos, a expectativa de vida da população brasileira passou de 45,5 anos em 1940 para 75,5 anos em 2015, um aumento de 30 anos num curto espaço de tempo, de forma que o climatério passou a ser vivenciado por uma população significativamente maior, o que requer a implementação de políticas de atenção e promoção a saúde feminina diferenciadas por parte do estado e dos profissionais diretamente envolvidos. Trata-se de uma questão de saúde pública, em função do contingente de mulheres presentes na população. A necessidade de atenção é imperiosa.

 O climatério evidencia uma necessidade de reflexão a respeito da própria vida, sendo necessária uma reavaliação criteriosa e, ao mesmo tempo, perene, a respeito das próprias condições, das escolhas, de como a vida se desenrolou até então. A habilidade de negociação da mulher consigo mesma tem um grande impacto nesse período, pois surge a necessidade de equilíbrio entre os sonhos e as frustrações, uma vez que a função reprodutiva, tão representativa da feminilidade, encontra-se em declínio, e é preciso aprender a reconhecer o feminino para além dela. Negligenciar essa demanda certamente não vai ajudar, podendo dificultar muito a vivência do climatério. 

O climatério evidencia uma necessidade de reflexão a respeito da própria vida, sendo necessária uma reavaliação criteriosa e, ao mesmo tempo, perene, à respeito das próprias condições, das escolhas, de como a vida se desenrolou até então.

 Em atenção à essa necessidade, a Vocatum Psicologia se dedica a buscar contribuir com o universo feminino, trazendo temas e discussões que auxiliem à mulher nessa travessia, a partir de reflexões que suscitem autoconhecimento e uma melhor compreensão sobre o ser integral e as peculiaridades do climatério. Traremos temas pertinentes às alterações psicológicas e emocionais desse período, de forma simples e direta, na intenção de fornecer insumos para a compreensão da feminilidade face às novas necessidades adaptativas, visando a saúde emocional através da busca constante de autoaceitação. Esperamos contar com a sua parceria nessa viagem de descobertas e incremento do cuidado e respeito próprios. Vamos viajar juntas?

Bibliografia

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O primeiro ano do resto de nossas vidas

Protagonizado por um grupo de grandes amigos da faculdade, O primeiro ano do resto de nossas vidas trata dos dilemas da vida adulta, que logo se apresentam mais difíceis de resolver do que se imaginava nos anos da faculdade. Com a formatura, a vida desses jovens muda de rumo, mas ironicamente, seus problemas insistem em acompanha-los. Várias batalhas se travam e os desafios são inúmeros. Intensos conflitos familiares, dificuldades de auto aceitação, a busca por relacionamentos significativos e muitos outros se descortinam. Algumas dessas batalhas são árduas demais, e a vida parecer gostar de desferir golpes continuamente.

Pode soar intensa e dramática a vida desses amigos, mas certamente nos identificamos com alguns dos seus dilemas (senão muitos…), mesmo que de forma não tão condensada. Sua lealdade e amizade, entretanto, são fonte de alivio e inspiração. Entretanto, a mensagem que fica e a certeza de que, em qualquer época da vida, sempre teremos desafios. E, afinal, não necessariamente serão resolvidos, e teremos que aprender a lidar com eles, com uma certa dose de leveza e bom humor.

Um filme tocante, estrelado por um elenco de peso, que nos convida a repensar nossas expectativas, muitas vezes ilusórias, frente aos dilemas que temos que enfrentar. Uma produção cinematográfica sensível e profunda. 

FICHA TÉCNICA

  • Título Original – St Elmo’s Fire

  • Produção – Original Netflix

  • Direção – Joel Schumacher

  • País de produção – Estados Unidos

  • Ano de produção – 1985

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Rosa e Momo – La Vita Davante a Sé

Um assalto. Esse é o cenário inicial onde nasce a intensa relação entre Rosa e Momo. Ela, uma senhora de idade avançada de origem judaica e sobrevivente dos horrores do Holocausto. Carregada de memórias traumáticas, tornou-se prostituta. Fora de atuação, dedica-se a auxiliar as colegas de profissão ao cuidar de seus filhos enquanto elas precisam ganhar a vida.

Momo é um adolescente imigrante sozinho numa terra estranha, e busca na marginalidade algum acolhimento para o seu sofrimento. Ao assaltar Rosa, uma série de eventos se sucedem e nasce uma relação inusitada entre os dois. 

Depois de um começo tumultuado, vai crescendo uma relação de respeito, afeto e amizade mútua, onde ambos se ajudam e se resgatam guiados pelas forças misteriosas do coração. 

Rosa e Momo é um filme que nos impulsiona a repensar as possibilidades de vida após as grandes tragédias, colocando o sofrimento sob perspectiva.

A atuação magistral da atriz aclamada Sophia Loren e do jovem ator Ibrahima Gueye conferem a esse drama uma sensibilidade tenaz, capaz de tocar as nossas mentes e corações.

FICHA TÉCNICA

  • Título Original – La Vita Davante a Sé

  • Produção – Original Netflix

  • Direção – Edoardo Ponti

  • País de produção – Itália

  • Ano de produção – 2019

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A tenda vermelha

Dinah é o seu nome. E dessa vez ela é a protagonista da estória, e não seu pai Jacó, como na narrativa bíblica contida em alguns capítulos do livro de Genesis. Na voz dessa mulher, ecoam os imensuráveis desafios do feminino na antiguidade. 

A tenda vermelha, um lugar de mistério e fascínio, é um espaço destinado essencialmente para as particularidades do feminino, onde as mulheres permanecem durantes os ciclos menstruais, períodos de convalescença e para dar à luz. O local é frequentado exclusivamente por mulheres, e mesmo as meninas só tem autorização para adentra-lo após a menarca – a primeira menstruação.

A estória que nos apresenta Anita Diamant vai muito além da descrição da violência sofrida por Dinah. Perpassa pela relação com as quatro esposas de seu pai Jacó e seus muitos irmãos. O feminino é evocado e fortalecido na tenda vermelha, em oposição ao silêncio doloroso e resignado imposto pela cultura patriarcal e tradições familiares intimidadoras para a mulher, se desnuda na vivencia dessas mulheres. Seus medos, mágoas, paixões, percepções, intuições, os diversos rituais e seus partos formam uma teia sutil e impactante de aliança e sororidade. A tenda vermelha é uma viagem fascinante para dentro do universo feminino. Difícil não se envolver, improvável não se comover e impossível não se emocionar. 

Sobre a autora – Anita Diamant nasceu em Nova York e é uma jornalista e escritora premiada, mundialmente reconhecida pelo seu trabalho. Seus livros foram traduzidos em diversos idiomas, e A Tenda Vermelha inspirou a série da Netflix que recebeu o mesmo nome, lançada em 2014. 

FICHA TÉCNICA

  • Nome original – The Red Tent

  • Autora – Anita Diamant

  • Tradução – Rui Gabriel Viana Pereira e Paulo Guimaraes Pedro

  • Pais de origem – Estados Unidos

  • Número de páginas – 304

  • Ano de lançamento – 2001

  • ISBN-13 ISBN 008599296086

  • Editora Arqueiro